A Armadilha da Emancipação: Como a Dominação Masculina Se Reproduz Mesmo na Crítica

Resumo
O presente artigo analisa três discursos distintos sobre a fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao referir-se à ministra Gleisi Hoffmann como uma "mulher bonita" para melhorar a relação com o Congresso. A partir da teoria de Pierre Bourdieu, em A Dominação Masculina, discuto como tanto a defesa da ministra quanto as críticas das jornalistas Natuza Nery e Ana Flor operam dentro da lógica da violência simbólica. Argumento que, mesmo ao criticar o machismo, essas narrativas continuam presas dentro da estrutura patriarcal, evidenciando a dificuldade de escapar da dominação masculina dentro do campo político e midiático. A emancipação feminina, quando construída dentro dos parâmetros masculinos, pode se tornar uma nova forma de submissão.
1. Introdução
Ao analisarmos qualquer discurso, não podemos ignorar a estrutura na qual ele se insere. As três falas em questão – a defesa de Gleisi Hoffmann e as críticas de Natuza Nery e Ana Flor – partem de lugares diferentes, mas operam dentro do mesmo sistema de dominação masculina. Se há algo que Pierre Bourdieu nos ensina em A Dominação Masculina (1999), é que a violência simbólica está enraizada nas práticas sociais de forma tão profunda que, muitas vezes, os próprios dominados a reproduzem sem perceber. Isso nos leva a uma questão central: é possível escapar da lógica patriarcal quando toda a estrutura que nos cerca é moldada por ela?
O caso em análise é emblemático porque demonstra que, mesmo quando há um esforço para desconstruir a dominação masculina, isso é feito dentro dos limites impostos pelo próprio sistema patriarcal. A crítica ao machismo, quando conduzida dentro das coordenadas já estabelecidas por essa estrutura, pode acabar reafirmando aquilo que busca combater.
2. O Contexto das Falas e a Reação das Protagonistas
Durante um evento, o presidente Lula afirmou que nomeou uma "mulher bonita" para a Secretaria de Relações Institucionais, referindo-se à ministra Gleisi Hoffmann. Essa declaração gerou reações diversas, que podem ser divididas em três grandes grupos:
1. A defesa de Gleisi Hoffmann, que relativiza a fala de Lula e argumenta que seu histórico no empoderamento feminino é mais relevante do que um comentário isolado.
2. A crítica de Natuza Nery, que argumenta que a fala reforça um padrão de desvalorização das mulheres na política e que, se fosse dita por Bolsonaro, a repercussão seria muito maior.
3. A crítica de Ana Flor, que expressa indignação ao colocar a questão da repetição da objetificação feminina, enfatizando o cansaço das mulheres com esse tipo de discurso.
O que essas três respostas têm em comum? Todas operam dentro de um modelo discursivo que já foi estabelecido pelo próprio patriarcado.
3. A Violência Simbólica: A Dominação que se Mantém Mesmo na Crítica
Bourdieu define a violência simbólica como um tipo de dominação que não precisa ser imposta pela força, pois é aceita inconscientemente tanto pelos dominadores quanto pelos dominados. Ela se manifesta nas práticas cotidianas, nos discursos e nas normas sociais que parecem naturais, mas que, na realidade, reforçam a ordem estabelecida.
A fala de Lula se insere dentro dessa lógica porque:
Reduz a competência da ministra a um atributo estético, ignorando sua experiência política.
Reafirma um padrão cultural onde a mulher, mesmo em posição de poder, ainda é avaliada por sua aparência.
Naturaliza a ideia de que a presença feminina em cargos políticos pode ser instrumentalizada para finalidades estratégicas.
Mas a questão mais interessante não é a fala de Lula em si, e sim como os discursos que vieram depois dela não escapam da estrutura que ele reforçou.
4. A Defesa e a Neutralização do Machismo
Gleisi Hoffmann, ao responder, não nega que a fala tenha um viés problemático, mas prefere destacar o histórico progressista de Lula. Esse tipo de argumentação é comum quando se tenta neutralizar críticas que podem fragilizar um líder político. No entanto, ao fazer isso, a ministra também participa de um mecanismo de legitimação simbólica da dominação masculina.
Bourdieu explica que o dominado pode, muitas vezes, ser um agente da perpetuação de sua própria dominação. Esse é o caso aqui: em vez de confrontar diretamente a fala de Lula, Gleisi opta por relativizá-la, justificando-a dentro de um contexto que mantém sua posição política segura.
5. A Crítica e a Reafirmação da Estrutura Patriarcal
Já as críticas de Natuza e Ana Flor assumem um tom mais combativo, mas ainda operam dentro do campo simbólico da dominação masculina. Quando Natuza argumenta que "se fosse Bolsonaro, a reação seria maior", ela sugere que há um duplo padrão na tolerância ao machismo, o que é uma observação válida. Porém, essa análise ainda ocorre dentro do pressuposto de que é necessário esperar a validação masculina para determinar o que é ou não aceitável.
Ana Flor, por sua vez, enfatiza o cansaço feminino com esse tipo de fala. Esse é um ponto relevante, mas que também se insere na lógica de pedir que os homens mudem seu comportamento, sem questionar por que as mulheres ainda precisam reagir a isso.
Aqui está o verdadeiro paradoxo: mesmo quando as mulheres criticam a dominação masculina, frequentemente o fazem dentro da própria estrutura que permite essa dominação.
6. A Armadilha da Emancipação Dentro do Sistema Patriarcal
Se a luta pela igualdade ocorre dentro dos parâmetros do patriarcado, ela pode acabar sendo apenas uma reformulação da mesma hierarquia. Isso nos leva a um dilema: como escapar de uma estrutura que molda até a forma como concebemos a liberdade?
Bourdieu sugere que, para romper com a dominação simbólica, é necessário um trabalho de desnaturalização. Isso significa questionar não apenas o que é dito, mas por que certas estruturas de poder se mantêm intactas mesmo quando aparentemente são criticadas.
Se o feminismo institucionalizado opera dentro das normas do sistema patriarcal, será que ele realmente oferece uma alternativa? Ou será que estamos apenas substituindo uma forma de dominação por outra?
7. Conclusão: A Ilusão da Transformação Dentro das Mesmas Regras
As três falas analisadas mostram que, mesmo quando há tentativas de combater o machismo, essas respostas muitas vezes não conseguem romper com a lógica da dominação masculina. Isso ocorre porque a própria linguagem e os referenciais utilizados ainda pertencem ao campo simbólico estruturado pelo patriarcado.
A crítica de Natuza e Ana Flor é válida, mas permanece dentro da lógica da exigência masculina de respeito, como se a verdadeira emancipação feminina dependesse da reeducação dos homens. Da mesma forma, a defesa de Gleisi, ao relativizar a fala de Lula, reafirma um espaço onde a dominação masculina pode ser aceita desde que compensada por avanços pontuais.
No fim, todas essas posições nos fazem retornar à questão inicial: a luta pela igualdade pode ocorrer dentro do mesmo sistema que a oprime? Ou estamos apenas nos movendo dentro de um jogo cujas regras já foram estabelecidas para nos manter dentro dele?
Bourdieu nos alerta que a dominação simbólica é difícil de ser rompida exatamente porque ela não parece uma dominação. E talvez o maior perigo do feminismo dentro da política e da mídia seja esse: ser assimilado pelo próprio sistema que um dia tentou derrubar.
Referências Bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
1. Declaração de Gleisi Hoffmann defendendo o presidente Lula:
https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2025/03/13/apos-lula-defender-mulher-bonita-para-aprimorar-relacao-com-congresso-gleisi-diz-que-gestos-valem-mais-do-que-palavras.ghtml
2. Comentários de Natuza Nery sobre a declaração de Lula:
https://www.instagram.com/reel/DHJLGZrJ6TO/
#maispertodaignorancia
#norolecomaignorancia
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