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O Direito de Ser Assaltado: Um Guia Contemporâneo para a Normalização da Violência

O Direito de Ser Assaltado: Um Guia Contemporâneo para a Normalização da Violência

Ah, o Brasil! Terra de sol, samba, suor e, claro, uma criminalidade tão rotineira que virou trilha sonora da vida urbana. Aqui, não basta pagar impostos, contribuir para a máquina estatal ou acreditar na ficção jurídica chamada Constituição. Não, não. Você também precisa ser um especialista em sobrevivência urbana!

Recentemente, uma médica foi brutalmente atacada em São Paulo, teve uma costela quebrada e um dedo mordido por um assaltante. Mas veja bem, a indignação nacional não girou em torno do fato de que a segurança pública é um conceito abstrato. Não. A pergunta que ressoou foi: "O que ela estava fazendo correndo às 4h30 da manhã?"

E é aqui que percebemos o brilhantismo da sociedade contemporânea: a inversão total da lógica. A vítima, coitada, além de lidar com a violência, precisa ainda justificar sua própria existência naquele horário.


Como se não bastasse, poucos dias antes, um ciclista de 46 anos foi assassinado em frente ao Parque do Povo, também em São Paulo, por volta das 6h da manhã. Dois homens em uma moto o abordaram, atiraram e levaram seu celular. A reação? "Mas quem manda andar de bicicleta tão cedo assim?" Afinal, todos sabemos que o crime tem horário marcado e locais específicos para acontecer.

A Liberdade Condicionada: O Direito de Estar No Lugar Errado

Byung-Chul Han já nos alertava sobre a sociedade do desempenho: um sistema onde a liberdade é tão vendida como mercadoria que nos esquecemos de que nunca fomos livres. Claro, a Constituição nos garante ir e vir, mas veja bem, só durante horário comercial.

Sair na rua de madrugada? Você está pedindo para ser assaltado. Andar em certas regiões da cidade? Você está pedindo para ser morto. Dirigir um carro bom? Você está pedindo para ser sequestrado.

A liberdade existe, mas tem restrições invisíveis, cuidadosamente incorporadas à nossa psique. Você é livre para fazer o que quiser, desde que não faça o que não deve. Nietzsche chamaria isso de moralismo reativo: uma obediência cega às condições impostas pelo medo. Melhor ainda se você internalizar a opressão e nem precisar que o Estado te vigie. Você mesmo se encarrega disso.

A Negação e o Distanciamento: "Isso Nunca Aconteceria Comigo"

Cioran, esse mestre da decomposição existencial, diria que o grande truque da nossa era é a negação. Diante da notícia da médica atacada ou do ciclista assassinado, a resposta automática não é indignação contra o sistema, mas sim o distanciamento:

"Isso é coisa de São Paulo, aqui na minha cidade é diferente." "Isso nunca aconteceria comigo, porque eu nunca saio de casa tão cedo." "Ela deveria ter pensado melhor antes de correr nesse horário."

Ah, que alívio! O problema não é estrutural, não é fruto da falência do Estado, não é reflexo da desigualdade que Marx tanto explicou. Não. O problema é apenas uma questão de decisão pessoal. Como se segurança fosse um luxo reservado aos prudentes, aos que seguem as regras invisíveis da boa cidadania.

E assim, num passe de mágica, a culpa da violência se desloca. O bandido? Ah, ele está apenas seguindo o fluxo. A vítima? Essa sim, foi irresponsável.

A Segurança Pública Como Mito Urbano

A segurança no Brasil funciona como uma promessa de político em época de eleição: todos acreditam, mas ninguém a vê. E o mais impressionante? O ciclo se repete. O brasileiro continua pagando impostos como se vivesse na Suíça, mas anda nas ruas como se estivesse em Bagdá.

E quando alguém aponta isso, o que acontece? Silêncio. Ou pior, negação. "Ah, mas em qualquer lugar do mundo tem violência." Sim, claro, porque Nova York e São Paulo têm exatamente o mesmo índice de homicídios, não é mesmo?

Mas ninguém quer encarar esse abismo. É melhor se distrair nas redes sociais, acreditar na ilusão de que sua bolha digital representa a realidade e seguir em frente. Como diria Han, vivemos num mundo onde a alienação não precisa ser imposta, ela é voluntária.

Conclusão: 

O Direito de Ser Assaltado e o Privilégio da Cegueira

Ao final de tudo isso, percebo que ser assaltado no Brasil não é apenas um risco. É um direito. Um direito tão garantido quanto o direito à saúde (sucateada), à educação (privatizada) e ao lazer (limitado aos shoppings).

E não, a culpa nunca será do sistema. Sempre haverá um "mas" justificando a violência:

"Mas por que ela estava lá?"

"Mas quem mandou usar um celular caro?"

"Mas ninguém mandou reagir."

Afinal, de que adianta exigir mudanças se podemos apenas adaptar nosso comportamento à decadência? Que luxo seria viver em um país onde a culpa do crime recai sobre o criminoso, e não sobre a vítima!

Mas ei, vamos manter as aparências. Afinal, "o Brasil é um país abençoado".

Referências

CIORAN, Emil. Breviário da decomposição. São Paulo: Rocco, 2011.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

MARX, Karl. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Notícia: G1 Globo. Médica diz que teve costela quebrada por assaltante que mordeu seu dedo para roubar aliança em SP [Online]. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/02/17/estou-na-uti-a-base-de-morfina-medica-diz-que-teve-costela-quebrada-por-assaltante-que-mordeu-seu-dedo-para-roubar-alianca-em-sp-video.ghtml

Notícia: G1 Globo. Ciclista é baleado em frente ao Parque do Povo em SP [Online]. Disponível em: [https://g1.globo.com/sp/sao-pa

#maispertodaignorancia
@joseantoniolucindodasilva


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