O Desejo Já Não Nos Pertence: A Captura Algorítmica da Vontade Humana
Introdução
Sempre acreditei que o desejo fosse uma experiência pessoal, algo que emergia do meu interior, das minhas vivências e escolhas. No entanto, conforme fui me aprofundando em autores como René Girard, Byung-Chul Han, Freud e Marcuse, percebi que essa ideia era uma ilusão bem construída. O desejo, longe de ser espontâneo, é um reflexo do desejo do outro, e essa estrutura mimética sempre foi parte da humanidade. Mas há algo ainda mais profundo acontecendo na contemporaneidade: o desejo agora é antecipado, gerenciado e transformado em demanda pelas redes mediáticas e pelos algoritmos que operam no espaço digital.
Se antes o desejo mimético nos fazia desejar o que o outro deseja, agora o próprio sistema digital organiza essa lógica, inserindo objetos de desejo em nossas vidas sem que sequer tivéssemos tempo para desejá-los. O que isso significa para a nossa subjetividade? Ainda somos seres desejantes ou apenas consumidores de desejos fabricados?
Este texto busca explorar essa questão, mergulhando na relação entre desejo, mediação algorítmica e a conversão do desejo em demanda. Para isso, trago reflexões filosóficas e psicanalíticas, apoiadas em referências que sustentam essa inquietação.
1. O Amor Mimético e a Imitação do Desejo
René Girard foi um dos primeiros a estruturar a ideia de que o desejo não é autônomo, mas sim imitado. Em sua teoria mimética, ele explica que não desejamos objetos diretamente, mas sim porque vemos outra pessoa desejando-os. O desejo, então, é triangulado:
Existe um sujeito desejante;
Um mediador do desejo, que influencia essa escolha;
E o objeto do desejo, que se torna mais valioso à medida que é desejado por outros.
Esse jogo de espelhos cria rivalidades, pois quando um objeto é percebido como valioso, torna-se ainda mais desejado pelo simples fato de que outro o deseja.
Esse conceito pode ser facilmente aplicado ao amor. Em muitas situações, nos apaixonamos não porque genuinamente encontramos algo de especial na outra pessoa, mas porque validamos essa pessoa a partir da forma como os outros a desejam. Esse fenômeno fica ainda mais evidente na era digital, onde o desejo é medido por curtidas, comentários e interações.
Se antes desejávamos alguém porque o outro também desejava, hoje desejamos porque a rede inteira indica que algo deve ser desejado. A subjetividade do desejo se dissolve em um fluxo contínuo de sinais e validações. O amor mimético, que já era um fenômeno social e psicológico, agora se expande e se intensifica sob a lógica dos algoritmos.
2. A Mercantilização do Desejo e a Perda da Contração
Byung-Chul Han, em A Sociedade do Cansaço e A Agonia do Eros, aponta que vivemos em uma era onde o desejo não pode mais se desenvolver de forma genuína. A sociedade contemporânea não tolera a tensão necessária para que o desejo se constitua; ao invés disso, acelera e antecipa tudo, transformando o desejo em demanda.
O problema disso é que o desejo, para ser realmente vivido, exige um tempo de contração, ou seja, um período onde ele se desenvolve na ausência do objeto. A tensão entre querer algo e obtê-lo é o que dá força ao desejo. No entanto, na era digital, essa contração desaparece.
Tudo o que queremos já está pronto para consumo imediato. Aplicativos de relacionamento eliminam o tempo da conquista, anúncios nos mostram o que comprar antes mesmo de termos um interesse genuíno, e opiniões são moldadas antes mesmo de termos um pensamento próprio sobre elas.
Isso significa que o desejo, enquanto um movimento interno, deixa de existir. Ele é reduzido a um processo operacional onde simplesmente seguimos o fluxo do que é desejado por outros, sem nunca realmente experienciar a tensão que tornaria esse desejo autêntico.
3. O Algoritmo Como Mediador Absoluto
Se Girard nos mostrou que desejamos porque imitamos o desejo do outro, então o que acontece quando essa mediação deixa de ser humana e passa a ser algorítmica?
Essa é a realidade contemporânea: os algoritmos não apenas capturam nossos desejos, mas os moldam antes mesmo de os termos.
Hoje, vejo algo estarrecedor: produtos aparecem no meu feed antes que eu tenha manifestado interesse, ideias são sugeridas antes que eu tenha tido tempo de refletir sobre elas, e tendências me são impostas sem que eu tenha participado de sua criação. Os algoritmos não apenas seguem o que queremos, eles nos dizem o que devemos querer.
Isso significa que não há mais espaço para um desejo autêntico. O desejo foi sequestrado pela estrutura digital, sendo moldado e direcionado de maneira invisível. Não se trata mais de mimetizar o desejo de um amigo próximo ou de uma figura pública: trata-se de mimetizar o desejo de uma máquina que, por definição, não sente desejo.
4. O Desejo Como Demanda e a Impossibilidade da Satisfação
Herbert Marcuse, em Eros e Civilização, já havia apontado que a sociedade capitalista transforma o desejo em um ciclo infinito de consumo. O desejo genuíno nunca pode ser plenamente satisfeito porque, se fosse, o sistema de produção entraria em colapso.
Nas redes sociais, isso se manifesta da seguinte forma: quando um desejo é criado, ele já vem com uma obsolescência programada. O que desejamos hoje será substituído amanhã por um novo desejo, e assim sucessivamente.
O desejo não é mais uma pulsão interna que busca satisfação, mas uma demanda que precisa ser constantemente renovada para manter o fluxo do consumo.
O problema central é que, quando o desejo se torna demanda, ele perde sua essência. O desejo genuíno surge da falta, da ausência, da expectativa. Mas a demanda não pode permitir essa falta: ela precisa ser imediata, contínua e infinita.
Conclusão: Existe um Desejo Fora da Estrutura?
Diante dessa análise, a pergunta que fica é: existe um desejo que escape dessa lógica? Podemos encontrar um espaço onde o desejo seja genuíno, livre da mediação algorítmica e da conversão do desejo em demanda?
Minha resposta, infelizmente, é pessimista. O desejo já foi sequestrado, empacotado e transformado em mercadoria. Sequer temos tempo para formular nossos próprios desejos antes que eles nos sejam entregues como opções pré-programadas. Se o desejo nasce da falta, como pode existir em um mundo onde tudo já foi antecipado?
Talvez a única forma de resistência não seja buscar um desejo "puro", mas simplesmente reconhecer que não somos senhores do nosso próprio querer. Apenas a consciência dessa prisão pode nos dar algum nível de autonomia—mas, mesmo assim, dentro dos limites da estrutura. No fim, ainda somos parte do jogo mimético, e talvez sempre seremos.
Referências
GIRARD, René. Mentira Romântica e Verdade Romanesca. São Paulo: É Realizações, 2011.
HAN, Byung-Chul. A Agonia do Eros. Petrópolis: Vozes, 2019.
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
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