Depressão e Desempenho: Um Problema de Configuração ou Apenas Um Bug do Sistema?
Autor: José Antônio Lucindo da Silva
Referência principal: BBC News Brasil – "Por que o Brasil tem a população mais depressiva da América Latina"
Link:
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czkekymmv55o
Introdução
É curioso pensar que a depressão no Brasil possa ser reduzida a uma questão de falta de estrutura. Como se o problema fosse apenas um erro técnico do SUS, um descuido administrativo que nos torna os campeões latino-americanos na taxa de transtornos depressivos. Claro, há uma carência inegável de atendimento, uma distribuição desigual de profissionais da saúde mental e um estigma social enraizado. Mas será que é só isso? Será que o problema é apenas a ausência de psicólogos ou a falta de um protocolo de atendimento adequado?
Ou será que a própria lógica que nos adoece também molda a maneira como diagnosticamos, tratamos e tentamos superar essa condição?
Afinal, em um mundo onde tudo precisa ter um propósito, uma utilidade, um desempenho a ser cumprido – até mesmo a felicidade –, será que a depressão não se tornou apenas mais um defeito de fábrica, algo que precisa ser corrigido para que a engrenagem siga girando?
O Brasil Depressivo: Estatísticas ou Diagnóstico de um Modelo?
O artigo da BBC News Brasil nos apresenta números preocupantes: 5,8% da população brasileira sofre de depressão, o que equivale a 11,7 milhões de pessoas. Em termos continentais, ficamos atrás apenas dos Estados Unidos, uma nação que, curiosamente, compartilha da mesma lógica de hiperprodução e autoaperfeiçoamento constante.
Mas o que realmente me chama atenção é o subtexto: a depressão é tratada como um fenômeno isolado, um problema que pode ser solucionado com mais acesso à terapia e medicação. Ninguém questiona se a estrutura social onde estamos inseridos não está, na verdade, gerando e perpetuando essa condição.
O modelo econômico, a cultura da performance, a constante exposição ao olhar do outro através das redes sociais, o excesso de demandas e a precarização da existência são fatores que pressionam o sujeito não apenas a ser produtivo, mas a ser performativamente feliz. Não basta estar bem, é preciso mostrar que está bem. Não basta se recuperar da depressão, é preciso fazê-lo rápido – e de preferência com um sorriso para a selfie de volta à vida.
Depressão: Uma Falha no Código ou a Própria Estrutura do Software?
Se a depressão é um erro, onde exatamente está a falha?
O artigo sugere que a solução está em mais psicólogos, mais atendimento, mais sensibilização. Tudo isso, sem dúvida, é essencial. Mas mesmo que tivéssemos psicólogos disponíveis para todos, será que a depressão desapareceria? Ou será que estaríamos apenas ensinando o sujeito a se adaptar melhor ao sistema que o adoece?
O problema central não é que as pessoas estão deprimidas porque não têm acesso a tratamento. Elas estão deprimidas porque não há espaço para viver fora de uma lógica que as reduz a peças descartáveis dentro de um sistema que não tolera fragilidade, pausa ou contradição.
A depressão não é um erro no software. Ela é um sintoma legítimo de um modelo que sequestrou até mesmo o tempo necessário para elaborar o sofrimento.
A Ansiedade Como Pré-Requisito Para o Desespero
Se Freud já nos falava das três fontes de tensão inevitáveis da vida – o próprio corpo, o mundo externo e os outros humanos –, vivemos hoje uma quarta grande tensão: o desempenho como única medida de valor existencial.
O paradoxo moderno é que, ao tentar eliminar a depressão rapidamente, criamos o ambiente perfeito para a ansiedade – que, por sua vez, alimenta a própria depressão.
É como se a sociedade do desempenho dissesse:
"Está deprimido? Resolva isso rápido. Temos um aplicativo, um curso online, um coach para isso."
"Ansioso? Nada que um mindfulness corporativo ou uma dose de ritalina não resolvam."
E assim o sujeito segue correndo. Ele busca incessantemente um estado de bem-estar que nunca chega, porque o próprio esforço para alcançá-lo é o que mantém o ciclo funcionando. Como no pêndulo de Schopenhauer, ele oscila entre o tédio da funcionalidade mecânica e o desespero da busca por sentido.
A Materialidade Sempre Cobra
Por mais que tentemos nos esquivar da angústia, ela nunca desaparece. Podemos nos distrair com entretenimento, nos anestesiar com medicação, terceirizar a responsabilidade para discursos motivacionais – mas o corpo sente, o tempo pesa, a materialidade cobra.
Podemos ignorar a realidade, mas ela não nos ignora. E o que é pior: quanto mais tentamos escapar, mais profundamente nos enredamos nas teias que nos prendem.
Isso nos leva a um ponto fundamental que o artigo da BBC não aborda: e se o problema não for a depressão em si, mas a impossibilidade de elaborar a depressão dentro da estrutura social que temos?
Se a depressão precisa de tempo para ser compreendida, mas o sujeito não tem tempo, então qualquer tentativa de tratamento será apenas um paliativo – um remendo que permite que ele continue funcionando, mas sem nunca sair do ciclo que o destrói.
Conclusão:
O que é real e o que é apenas discurso?
Aqui voltamos a Cioran. Se o desespero é o que separa o real da ilusão, então o fato de a depressão estar em alta não deveria ser visto apenas como um problema de saúde pública, mas como um diagnóstico social.
O sujeito deprimido não é um erro de sistema. Ele é o sintoma mais verdadeiro desse sistema.
E talvez, no fundo, essa seja a questão que ninguém quer encarar: a depressão moderna não precisa de mais discursos sobre superação. Ela precisa de espaço para ser vivida, sentida e elaborada.
Mas esse espaço não existe. O tempo já foi tomado, e o mercado já precificou até mesmo o desespero.
Talvez o problema não seja que as pessoas estão deprimidas. O problema é que a única solução oferecida a elas é seguir em frente como se nada tivesse acontecido.
Referências
BBC News Brasil. Por que o Brasil tem a população mais depressiva da América Latina. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/czkekymmv55o. Acesso em: fevereiro de 2025.
Cioran, E. Breviário da Decomposição. São Paulo: Rocco, 2011.
Freud, S. O Mal-Estar na Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Han, B. C. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
Schopenhauer, A. O Mundo Como Vontade e Representação. São Paulo: UNESP, 2015.
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