Carnaval, violência e a espetacularização da desgraça: um brinde à nossa evolução!
O carnaval está chegando, e, como sempre, as preocupações com a segurança dominam as manchetes. Parece até que se repete um ritual anual: blocos, multidões, álcool, alegria... e, claro, a já tradicional onda de assaltos, brigas e, por que não?, um toque de violência urbana para temperar a folia. Afinal, carnaval de verdade só acontece nas ruas, dentro da materialidade concreta do espaço público, e veja...
E veja. Parece que a violência encontrou um novo propósito: o de virar entretenimento. Se antes era um problema a ser resolvido, agora se tornou produto de mídia. Nada mal para um mundo que prega paz, harmonia e respeito à vida, enquanto consome avidamente vídeos de agressões, assaltos e assassinatos em alta resolução. Sejamos sinceros: a violência sempre teve um quê de espetáculo. Desde as arenas romanas até as execuções públicas na Idade Média, sempre houve um público sedento por sangue, uma plateia fascinada pelo sofrimento alheio. Só que agora, em vez de gladiadores, temos câmeras de segurança. Em vez de um carrasco empunhando a espada, temos um anônimo segurando um smartphone.
Bauman (2013) já dizia que trocamos a liberdade pela segurança, mas parece que esquecemos um detalhe: a violência não desaparece – ela apenas muda de forma. E o mais fascinante (ou aterrador) é que, quanto mais tentamos nos afastar da brutalidade real, mais nos tornamos consumidores ávidos dela em seu formato digital.
Uma observação necessária: não é sobre o Carnaval, é sobre a percepção da violência
Antes de seguirmos, faço aqui uma observação essencial: não tenho nada contra o Carnaval. É uma festa legítima, reconhecida no mundo inteiro, com uma riqueza cultural inquestionável. Não é essa a questão. O que estou criticando, o que estou expondo aqui, é justamente essa violência mediática dentro de um espaço material que é o Carnaval.
O que quero pontuar é a forma como as redes sociais moldam nossa percepção da violência. A sensação que se constrói no digital é a de que há uma explosão incontrolável de crimes e tragédias, como se qualquer ambiente público estivesse condenado ao caos. No entanto, quando se vai a esses eventos – ou mesmo a outros espaços abertos –, percebe-se que a materialidade da experiência apresenta uma banalidade diferente: a violência não é onipresente, mas sim intermitente. Isso não significa que a insegurança não exista, mas sim que há um descompasso entre a realidade vivida e a percepção moldada pelo fluxo incessante de imagens violentas nas redes.
E o mais paradoxal: a liberdade que supostamente deveríamos ter no campo material passa a ser substituída por uma constante vigilância sobre nós mesmos. O sujeito, ao invés de simplesmente usufruir do espaço público, precisa estar o tempo todo atento, autoconsciente, preocupado com sua própria segurança. Assim, mesmo dentro da festa, a sensação de perigo nos mantém em estado de alerta, contaminando a experiência.
A violência como espetáculo: de Roma ao feed do Instagram
Basta abrir qualquer rede social para perceber: enquanto vídeos de gatinhos fofos ou celebrações de amizade acumulam algumas curtidas discretas, cenas de tragédias humanas explodem em engajamento. Quer um exemplo? Recentemente, um vídeo de um assassinato em um condomínio no Rio de Janeiro viralizou. Foram milhares de comentários, curtidas e compartilhamentos. Por quê? Porque o espetáculo da violência vende, entretém e vicia.
E isso não é só uma questão contemporânea. René Girard (2010), ao estudar os mecanismos de sacrifício e violência nas sociedades humanas, mostrou que sempre existiu a necessidade de um bode expiatório – uma vítima cujo sofrimento acalmaria as tensões coletivas. O sacrifício era uma forma de manter a ordem social, de canalizar os impulsos destrutivos da humanidade. Hoje, a lógica permanece a mesma, mas o rito mudou de cenário: os altares sacrificiais se tornaram os feeds das redes sociais. A cada vídeo de linchamento ou execução que viraliza, reencenamos o velho ritual: escolhemos uma vítima, a expomos publicamente e, ao assistirmos, experimentamos uma espécie de catarse. E no dia seguinte, seguimos nossas vidas, esperando pelo próximo sacrifício digital.
É por isso que deveríamos estar celebrando a felicidade, a vida, a construção de algo positivo, não? Mas, curiosamente, escolhemos o contrário. A tragédia se tornou o grande evento do dia. Vargas Llosa (2012) descreve essa dinâmica na Civilização do Espetáculo: vivemos em uma era onde a tragédia gera mais engajamento do que a alegria, onde a comoção pública se tornou um substituto barato para qualquer reflexão real sobre a condição humana.
A digitalização da violência e a eliminação do outro
Se tudo se tornou espetáculo, é porque o outro se tornou apenas uma imagem, um fragmento descartável dentro do fluxo interminável da internet. Byung-Chul Han (2022), em A Sociedade do Cansaço, alerta que o excesso de informação e exposição nos transformou em consumidores passivos de acontecimentos, sem espaço para elaboração. A violência digitalizada não provoca reflexão nem revolta legítima – apenas impulsiona novos cliques. O outro deixa de ser um ser humano e se torna um objeto funcional, uma “não-coisa” – uma presença reduzida a pixels e estatísticas.
E o mais curioso é que, apesar de todo o discurso humanista, no final do dia a vida continua sendo tratada como um mero detalhe. A tecnologia avança, mas o respeito pelo outro regride. Afinal, que valor tem um ser humano se ele pode ser reduzido a um vídeo curto de 30 segundos no TikTok, devidamente legendado com emojis e uma música dramática ao fundo?
Nietzsche (2011) já apontava para essa inversão de valores da modernidade. Vivemos em uma era onde a banalização da vida se tornou uma forma de consumo. A existência do outro só importa se puder ser transformada em um espetáculo. Não há reflexão, não há luto, não há consciência. Apenas números, engajamento, curtidas e uma constante sede de novidade – de preferência trágica.
O mal-estar digital e a negação da finitude
Freud (2010), ao analisar O Mal-Estar na Civilização, argumentava que a repressão dos impulsos agressivos e sexuais é o que permite a organização da sociedade. No entanto, a modernidade encontrou um atalho curioso: ao invés de sublimar a violência, escolhemos representá-la incessantemente. Mas há um detalhe irônico nisso: essa violência digitalizada, essa compulsão pelo consumo da desgraça alheia, não nos liberta da angústia. Pelo contrário, ela apenas reforça a nossa própria ansiedade e impotência.
A tragédia como identidade e o fim da alteridade
O que me preocupa não é só o fato de consumirmos violência como entretenimento, mas sim que a tragédia está se tornando a própria identidade do sujeito moderno. Se tudo é espetáculo, onde fica a experiência genuína da alteridade? Se o outro só existe na medida em que pode ser consumido digitalmente, o que acontece quando ele deixa de ser interessante?
Talvez estejamos condenados a um ciclo onde a violência sempre encontrará uma nova forma de se manifestar – seja no asfalto ensanguentado ou no feed de notícias.
Agora, me digam: de que me vale toda essa evolução tecnológica se ainda não respeito o universo que é o outro?
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Vigilância líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GIRARD, René. Violência e o sagrado. São Paulo: Editora da USP, 2010.
HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. São Paulo: Vozes, 2022.
LLOSA, Mario Vargas. A civilização do espetáculo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
CIORAN, Emil. Breviário da decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
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