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A Ilusão Digital e o Corpo que Apodrece: Uma Reflexão Materialista em Tempos de Aceleração Discursiva

A Ilusão Digital e o Corpo que Apodrece: Uma Reflexão Materialista em Tempos de Aceleração Discursiva

Vivemos na era da superaçã⁠o. Superamos limites, barreiras e, claro, tentamos superar até mesmo o nosso corpo. Afinal, por que aceitar a decadência inevitável da matéria quando podemos esconder tudo isso com um bom filtro digital ou uma cirurgia estética financiada em suaves prestações? A ironia aqui é deliciosa: tentamos fugir daquilo que mais nos define, nossa própria materialidade, como se um discurso engajado nas redes pudesse nos salvar da decomposição que, inevitavelmente, virá.

Não é curioso como todos os nossos grandes dilemas existenciais agora cabem em 280 caracteres ou em um story de 15 segundos? E ainda assim, fingimos que estamos elaborando algo profundo enquanto ignoramos a função mais básica do corpo: existir no tempo e no espaço. A aceleração discursiva não é uma solução, é um sintoma.

Segundo Cioran (2009), a dúvida não é uma ferramenta de sabedoria, mas um mecanismo de fuga do desespero que nossa própria existência nos impõe. Ficar rolando o feed até as duas da manhã talvez seja só a versão contemporânea desse desespero disfarçado de distração. Quem precisa pensar na morte quando se tem um início infinito de atualizações?

O problema é que o corpo não acelera na mesma velocidade das redes. Como afirma Byung-Chul Han (2015), vivemos numa sociedade do cansaço, onde a pressão pelo desempenho se impõe com tanta força que esquecemos da lentidão da carne. Não à toa, somos uma geração que se enche de remédios para dormir e acordar, mas nunca para existir.

É fascinante observar como as redes sociais transformaram a própria identidade em mercadoria. Como Bauman (2001) diria, nossas relações são líquidas, mas eu acrescentaria: também são extremamente descartáveis, e o "eu" que construímos para as redes é moldado para agradar um algoritmo, não para sobreviver à realidade.

O mais irônico de tudo é que, enquanto discutimos identidade, inclusão e autoaceitação nas plataformas digitais, rejeitamos a própria matéria que nos constitui. Defeitos corporais são eliminados em aplicativos antes mesmo de serem aceitos pelo sujeito. A existência se tornou um problema de edição de imagem.

No fim das contas, toda essa corrida é apenas uma tentativa desesperada de fugir de uma realidade simples: somos carne, e carne apodrece. Mas, claro, é mais fácil acreditar em um feed de perfeição eterna do que encarar o espelho com a coragem de um verdadeiro mortal.


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Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

CIORAN, Emil. Breviário da Decomposição. São Paulo: Rocco, 2009.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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José Antônio Lucindo da Silva CRP:06/172551 joseantoniolcnd@gmail.com



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