Por José Antônio Lucindo da Silva
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@joseantoniolucindodasilva
#maispertodaignorancia
Introdução
A contemporaneidade nos coloca diante de um paradoxo: vivemos em uma sociedade do excesso, onde tudo pode ser narrado, exposto e consumido discursivamente, e, ao mesmo tempo, nos encontramos cada vez mais distantes do real. Este texto se propõe a refletir sobre como o trauma, enquanto experiência subjetiva, é capturado pela lógica da discursividade mediática, perdendo sua capacidade transformadora e se tornando mais uma peça na engrenagem de alienação. Ao longo deste artigo, questionarei como a representação do trauma nos meios mediáticos impacta a subjetividade e a saúde mental, especialmente entre jovens e adolescentes, e como a desconexão com o real intensifica essa dinâmica.
O Trauma e a Discursividade Mediática
Freud já nos alertava que o trauma é um evento que não pode ser simbolizado no momento em que ocorre. Ele se inscreve como um ponto de ruptura no real e só posteriormente, através da Nachträglichkeit (ação retroativa), é integrado ao simbólico. Contudo, na sociedade contemporânea, a lógica da discursividade mediática transforma o trauma em um produto pronto para consumo, retroalimentado por narrativas externas que o fixam como identidade.
Ao narrar seu trauma nas redes, o sujeito busca validação externa, mas essa validação é superficial, limitada a curtidas e comentários. O trauma deixa de ser uma experiência singular para se tornar um "significante vazio", circulando no espaço discursivo sem que haja uma verdadeira elaboração simbólica. Essa dinâmica aliena o sujeito de seu próprio desejo, aprisionando-o no papel de vítima identitária.
A Desconexão com o Real
Freud também salienta, em O Mal-Estar na Civilização, que o trabalho é uma das formas mais concretas de ancoragem no real. O trabalho nos conecta à materialidade, exigindo esforço, disciplina e a manutenção do corpo. No entanto, na lógica contemporânea, o trabalho foi absorvido pela discursividade. Ele deixou de ser uma prática concreta e se transformou em um elemento de performance, onde "ser produtivo" ou "empreender" são narrativas que alienam o sujeito ainda mais de sua materialidade.
Paradoxalmente, discursos que promovem "trabalhar menos" ou "viver para o prazer imediato" não libertam o sujeito, mas o capturam em um ciclo de consumo mediático. O tempo que deveria ser usado para vivências concretas é absorvido pela lógica das redes, aumentando a desconexão com o real.
Ansiedade, Comparação e a Política do Medo
A discursividade mediática opera por meio de dinâmicas que intensificam a ansiedade e o sofrimento psíquico. O medo, a comparação e o engajamento se tornaram ferramentas políticas e econômicas poderosas:
1. Medo: Narrativas apocalípticas e polarizadas mantêm o sujeito em constante estado de alerta.
2. Comparação: Redes sociais promovem ideais inatingíveis, levando o sujeito a se sentir inadequado.
3. Engajamento: A necessidade de validação externa aprisiona o sujeito em uma lógica de dependência discursiva.
Esses fatores são especialmente preocupantes no caso de jovens e adolescentes, que estão crescendo em um ambiente onde o real tem pouco impacto diante da força alienante da discursividade. Dados recentes mostram o aumento de transtornos como ansiedade e depressão nessa faixa etária, bem como o crescimento alarmante das taxas de suicídio entre jovens. Essa geração não apenas sofre com os impactos do trauma, mas muitas vezes é incapaz de elaborar sua experiência devido à ausência de ancoragem material.
A Tensão Como Possibilidade Perdida
Freud e outros pensadores, como Ernst Becker, afirmam que a tensão é essencial para o desenvolvimento psíquico. O recalque e o desejo só emergem quando o sujeito se depara com limites, frustrações e contrariedades. No entanto, a sociedade contemporânea busca eliminar a tensão a todo custo, recorrendo a discursos de fuga, medicalização e positividade tóxica.
Essa negação da tensão impede que o sujeito encontre caminhos simbólicos para transformar o trauma. O que resta é um ciclo de alienação, onde o trauma é exposto, mas não elaborado, e a tensão necessária para gerar desejo e sublimação é suprimida.
O Papel da Clínica
Em meio a essa dinâmica alienante, a clínica se apresenta como um espaço de resistência. Diferentemente das redes mediáticas, onde o discurso é validado superficialmente, o setting analítico oferece um lugar para o cliente explorar suas narrativas de forma genuína. É na escuta terapêutica que o cliente pode revisitar suas crenças, conectar-se com sua materialidade e trabalhar suas angústias.
No entanto, em muitos casos, a medicalização se torna um recurso necessário para estabilizar o sujeito e permitir que ele participe do processo terapêutico. Longe de ser uma solução isolada, a medicação deve ser vista como um aliado do trabalho clínico, criando um terreno mais estável para a elaboração simbólica. O terapeuta, por sua vez, deve ajudar o cliente a questionar como suas crenças sobre si mesmo foram moldadas por discursos externos e a construir narrativas que integrem sua experiência traumática sem se reduzirem a ela.
Conclusão
O trauma na discursividade contemporânea nos desafia a pensar em como a lógica mediática captura e aliena o sujeito de seu desejo e de sua materialidade. A sociedade do excesso, ao transformar o trauma em espetáculo, impede sua elaboração simbólica, aprisionando o sujeito em uma identidade fixa e desconectada do real. No entanto, a clínica nos oferece um espaço para questionar essa lógica e ajudar o cliente a se reconectar com o que é mais genuíno em sua existência: sua materialidade, sua história e sua capacidade de transformação.
A questão que permanece é: como sustentar o espaço do questionamento em um mundo onde a discursividade busca respostas rápidas e superficiais? Talvez não tenhamos respostas definitivas, mas é no ato de questionar, e não de responder, que encontramos resistência diante da alienação.
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Referências
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.
HAN, Byung-Chul. A Sociedade da Transparência. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017.
BECKER, Ernest. A Negação da Morte. Tradução de Sylvia Scliar Cabral. Rio de Janeiro: Record, 2007.
DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: Uma Psicopatologia do Brasil entre Muros. São Paulo: Boitempo, 2015.
ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
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