O Corotinho e a Filosofia de Fila de Mercearia
Era uma manhã como outra qualquer, dessas que começam com café ralo e poucas expectativas. Por volta das 8h30, resolvi ir até a mercearia do bairro comprar pão e leite. Um desjejum simples, porque a vida também é assim, básica e direta. Ao entrar na mercearia, dei de cara com um personagem da realidade: um homem, visivelmente debilitado materialmente. Ou, como diria o politicamente incorreto de décadas passadas, um mendigo.
Reconheci o rosto. Já o tinha visto por ali outras vezes, mas nunca nos cumprimentamos. Ele me abordou com a honestidade que só quem não tem mais nada pode ter: pediu dinheiro. Respondi que só usava cartão. Mas, como estava ali mesmo, perguntei:
— O que você quer? Pode falar.
Sem hesitar, ele disse:
— Compra um corotinho de cachaça pra mim.
Parei por um segundo. Qualquer moralista vacilaria, mas a minha moral é prática. Se a vida dele já era um trem descarrilado, quem sou eu para me opor à ilusão da bebida? Então disse:
— Escolhe aí o que você quer beber.
Ele escolheu uma garrafa humilde, como quem sabe os limites da bondade alheia. Mostrei para a dona do caixa, uma senhora que comanda a mercearia como se fosse a ONU do bairro:
— Vou pagar a cachaça dele.
E aí começou o espetáculo. O ambiente ficou tenso, como se eu tivesse invocado alguma entidade profana. Algumas pessoas na fila trocaram olhares que diziam mais do que as bocas caladas. Não havia fila cortada, não havia crime. Havia, apenas, a minha decisão. Mas o silêncio era pesado, e eu, talvez mais por vaidade do que por obrigação, decidi me pronunciar:
— Senhores, desculpem-me, mas me digam: o que é real para vocês?
A pergunta não era retórica. Vivemos anestesiados, fugindo do que dói, comprando distrações, tomando remédios para não encarar a realidade. E ali estava aquele homem, encarando sua verdade com uma garrafa de cachaça na mão. Continuei:
— Ele pediu, e eu pude dar. Ele é honesto com sua realidade, enquanto nós inventamos desculpas para nossas ilusões. Vocês acham que ele é menos livre do que nós?
Claro, não era uma palestra, mas parecia uma. Expliquei que o alcoolismo é uma doença e que há grupos como Alcoólicos Anônimos, reconhecidos até em regimes totalitários, que oferecem apoio. Mas, naquele momento, a única coisa que aquele homem precisava era da ilusão de um gole para suportar o peso do dia.
Olhei para ele e disse:
— Você teve coragem de pedir. E muitos aqui só terão coragem de encarar a própria vida quando estiverem numa cama de hospital.
Houve um silêncio desconfortável. Talvez eu tenha exagerado, mas a ironia da situação não me escapava: nós, com nossos discursos de superioridade, tomamos antidepressivos, ansiolíticos e outros remédios para escapar da mesma realidade que julgamos nele. Ele, ao menos, foi honesto com sua fuga.
Finalizei dizendo:
— Ele é mais livre do que todos nós aqui dentro, porque não precisa fingir. Para ele, a vida é só o que ela é, nua e crua. Para nós, é um teatro.
Paguei a cachaça, ele agradeceu e saiu. Fiquei na fila, de volta à rotina, mas com uma pergunta que me acompanharia até o café com pão: quem ali realmente sabia o que estava fazendo com a própria liberdade?
Fim.
#maispertodaignorancia
@joseantoniolucindodasilva
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