Avançar para o conteúdo principal

Narciso Já Está Morto, Mas Continua Postando: A Ilusão do Eu Digital e o Colapso da Materialidade


 

Narciso Já Está Morto, Mas Continua Postando: A Ilusão do Eu Digital e o Colapso da Materialidade


Introdução: 


O Espelho Se Fechou Sobre Nós

Narciso olhava seu reflexo na água e se encantava. Mas nós? Nós fomos além. Mergulhamos no rio, atravessamos o espelho e agora nos debatemos em um espaço onde já não há água, não há ar, não há nada – apenas uma representação discursiva daquilo que um dia chamamos de subjetividade. Narciso morreu ao cair no lago. Nós já estamos mortos e continuamos postando.

Essa talvez seja a grande tragédia do nosso tempo: não existe mais um lado de fora. O mundo que um dia existiu sem a lógica digital simplesmente desapareceu, e nós o substituímos por uma miragem de subjetividade algorítmica, onde tudo é simulacro, mas nada é real.

Mas, veja bem, isso não é um problema – pelo menos para quem lucra com isso. Afinal, quanto mais tempo passamos flutuando nesse limbo, mais valiosos nos tornamos para o sistema que nos mantém reféns.


Engajamento ou Prisão? O Algoritmo Como Senhor da Subjetividade

Nos prometeram um espaço de liberdade, mas o que recebemos foi um campo de confinamento simbólico onde tudo precisa ser validado, interpretado e monetizado. Dizem que vivemos a era do engajamento, da interatividade, da conexão. Mas será que há engajamento real dentro dessa lógica discursiva, ou só estamos girando dentro de um ciclo fechado de reforço, repetindo discursos que já foram programados para serem repetidos?

Eu pergunto: se cada interação já foi antecipada, se cada reação já foi precificada, então o que ainda resta de humano nessa experiência?

A resposta é simples e cruel: resta muito pouco. A subjetividade foi transformada em métrica, o desejo em demanda, e a participação em um sistema onde a única regra é continuar existindo dentro dele, sem nunca parar para questionar a própria estrutura.

E se alguém tenta sair? Não sai. Porque já não há para onde ir.


A Segurança Digital Como Ilusão: O Conforto da Prisão Autoimposta

Trancamos a porta por dentro e chamamos isso de segurança. Acreditamos que estamos protegidos dentro de nossos quartos de 4x4, cercados por telas, imersos na ilusão de que ali encontramos um refúgio contra as incertezas da materialidade. Mas qual é a segurança real de um espaço que não existe?

O digital não protege da angústia – ele a amplifica. Se antes o sujeito precisava lidar com a dureza do real, agora ele busca um espaço artificial onde tudo pode ser controlado, mas nada pode ser vivido. O outro se tornou um reflexo de si mesmo, e o contato físico foi substituído pelo espelho interminável da discursividade digital.

Mas veja, não há saída. Porque o próprio desejo de sair já foi capturado pelo sistema e transformado em mais uma forma de engajamento. Se queremos liberdade, nos vendem conteúdos sobre como “se desconectar”. Se buscamos segurança, nos oferecem novas camadas de vigilância e controle.

E assim seguimos, tentando nos libertar de uma prisão que nós mesmos construímos – e da qual já não sabemos mais viver sem.


O Paradoxo do Eu Digital: O Reflexo Que Nos Consome

Mas o problema é ainda mais profundo. Não só aceitamos essa prisão – nós a desejamos. Criamos um eu digital idealizado, uma versão de nós mesmos que nunca envelhece, nunca falha, nunca sente a dor do real. E quanto mais alimentamos esse reflexo, mais nos distanciamos da nossa própria materialidade.

A tragédia não está apenas em estarmos presos nesse espaço – está no fato de que começamos a acreditar que ele é real.

  • A depressão e a ansiedade aumentam, mas o sujeito só sabe reagir a isso dentro do próprio sistema que as causou.
  • O cyberbullying se expande, mas a solução oferecida é mais monitoramento, mais controle, mais digitalização da subjetividade.
  • A insegurança nunca diminui, porque ela não pode diminuir – ela é o combustível do sistema.

O pior de tudo? Mesmo sabendo disso, continuamos aqui. Porque o lado de fora já não nos parece suficiente. Porque a materialidade, essa que um dia sustentou a experiência humana, já não nos pertence mais.


Conclusão: A Morte de Narciso e o Espelho Que Nunca Quebra

Narciso morreu ao cair no rio, mas nós? Nós caímos no rio e continuamos discutindo como se ainda estivéssemos vivos. O digital nos vendeu a ideia de que poderíamos existir ali dentro – mas tudo o que encontramos foi a impossibilidade de sair.

Então, o que nos resta?

A resposta é brutal: nada. Não há resgate possível. Não há retorno ao que existia antes. O que há é apenas a consciência de que o jogo já está jogado, e nós somos apenas os dados que continuam sendo coletados.

A liberdade? Foi convertida em engajamento.
A subjetividade? Foi transformada em produto.
A saída? Não existe.

A única resistência possível não é escapar – é saber que estamos presos. Mas saber disso muda alguma coisa? Ou apenas nos torna mais um item na prateleira da mercadoria digital?

No fim das contas, talvez a única coisa que possamos fazer seja olhar para esse espelho rachado e perguntar: ainda há algo de humano refletido ali?

Ou será que já fomos completamente absorvidos?


Referências Bibliográficas

  • BYUNG-CHUL HANA Morte do Eros (2021)
  • EDGAR MORINO Método (1977)
  • ELISABETH ROUDINESCOO Eu Soberano (2019)
  • ERNST BECKERA Negação da Morte (1973)
  • JEAN TWENGEIGEN (2017)
  • LACAN, JacquesEscritos (1966)
  • SNOWDEN, EdwardEternal Record (2019)
  • EMIL CIORANBreviário de Decomposição (1949)


José Antônio Lucindo da Silva
CRP: 06/172551
#maispertodaignorancia

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo Introdução: A Farsa da Liberdade na Sociedade Digital Ah, que tempos maravilhosos para se viver! Nunca estivemos tão livres, tão plenos, tão donos do nosso próprio destino – pelo menos é o que os gurus da autoajuda e os coachs do Instagram querem nos fazer acreditar. Afinal, estamos todos aqui, brilhando no feed infinito, consumindo discursos pré-moldados e vendendo nossas identidades digitais como se fossem produtos de supermercado. E o melhor de tudo? A ilusão da escolha. Podemos ser quem quisermos, desde que esse "eu" seja comercializável, engajável e rentável para os algoritmos que regem essa bela distopia do século XXI. Se Freud estivesse vivo, talvez revisitasse O Mal-Estar na Civilização (1930) e reescrevesse tudo, atualizando sua teoria do recalque para algo mais... contemporâneo. Afinal, hoje não reprimimos nada – muito pelo contrário. Estamos todos em um estado de hiperexpressão, gritando par...