Ao longo do tempo, tenho refletido sobre como chegamos ao ponto de sermos engolidos por discursos que não tensionam, mas anestesiam. Vivemos na era mais conectada da história, mas nunca estivemos tão desconectados de nossa própria materialidade. O que deveria ser um espaço de criação e confronto com o real se tornou um lugar de fuga, onde o excesso de discursos nos entorpece, nos fragiliza, nos afasta de qualquer possibilidade de enfrentar a realidade. Não vivemos mais, apenas funcionamos.
Jean M. Twenge, em iGen, descreve com clareza a geração que nasceu a partir de 1995, crescendo com smartphones e redes sociais como parte integral de sua existência. Esses jovens, e nós que também nos conectamos a esse fluxo, não sabem mais o que é viver fora da tela. As interações presenciais, as experiências materiais e as tensões reais se tornaram incômodos, algo a ser evitado. Não é surpresa que essa geração esteja mais ansiosa, deprimida e solitária. É quase óbvio. Tanta tecnologia para nos conectar e facilitar a vida, e ainda assim, aqui estamos: perdidos, incapazes de lidar com o básico da existência.
E, veja, não precisamos ir longe. Freud já dizia, há mais de um século, que é a tensão — o confronto com o outro, com o real, com a nossa finitude — que move a vida. A consciência de que há um fim é o que nos faz viver. Mas nós eliminamos isso. A morte, a única certeza concreta que temos, foi transformada em um tabu, um objeto distante que nunca nos toca diretamente. Nas redes sociais, ela é filtrada por emojis, suavizada em posts de "força e luz", romantizada em narrativas que jamais refletem sua brutalidade. No entanto, essa distância é ilusória, porque, no fundo, todos sabemos: ela está sempre aqui.
Mas há algo pior do que essa negação da morte. É a ilusão de que podemos viver sem encarar a materialidade. Criamos um mundo de discursos que tenta ignorar o fato de que a vida vivida — aquela que realmente importa — só existe no corpo, no tempo, na experiência. A vida que ficou atrás de mim foi construída em leituras, reflexões, confrontos com a realidade. Mas e aqueles que acreditam que o mundo se resume às paredes de um quarto, que acham que tudo está encapsulado em uma tela? Não é alienante? Claro que é. E mais do que isso: é destrutivo.
Veja o que temos hoje: uma sociedade que se diz livre, mas que rejeita a única liberdade verdadeira que temos, que é viver. O discurso da resiliência, por exemplo, é emblemático disso. Resiliência, um termo roubado da física, que originalmente se refere à capacidade de um material resistir à pressão, foi adaptado para os humanos como um ideal inalcançável. Mas nós não somos materiais inanimados. Temos limites. E, ironicamente, é exatamente nesses limites que a vida acontece. Mas o discurso atual nos exige resistência infinita. Não podemos quebrar. Não podemos sentir. Não podemos parar.
Não é à toa que o Brasil é um dos países mais ansiosos do mundo. Não temos guerras, não enfrentamos desastres diários, mas vivemos em um colapso subjetivo constante. Essa ansiedade, ao contrário do que parece, não vem de conflitos materiais. Ela é gerada por uma desconexão absurda entre o que somos e o que nos fazem acreditar que deveríamos ser. É uma ansiedade que nasce porque não sabemos lidar com a única coisa que realmente importa: a finitude.
Twenge argumenta que as redes sociais moldam não apenas nossos discursos, mas também nossas subjetividades. Elas criam uma nova camada de realidade que não é real, mas que acreditamos ser. É por isso que a depressão, a insuportabilidade do real, e essa sensação de vazio estão tão presentes. Porque, no fundo, tentamos sustentar uma fantasia que nunca poderá se concretizar. Quando o real nos confronta — seja na forma de fome, de limites corporais ou mesmo da morte —, não sabemos o que fazer. E como poderíamos? Nunca aprendemos.
Freud nos alertava: é o confronto com a morte que nos faz viver. Mas eliminamos isso do discurso. Eliminamos a tensão, o desejo, o Eros. No lugar disso, temos demandas. Demandas de produtividade, de sucesso, de felicidade superficial. Sem tensão, não há desejo. E sem desejo, não há vida. O que resta, então, é um ciclo de repetições vazias, onde nos anestesiamos com curtidas, notificações e a ilusão de conexão.
O que me preocupa é que ao eliminar a morte do discurso, eliminamos também a vida. Criamos uma geração que não sabe lidar com o real, que vive num estado de anestesia constante. Como alguém pode viver bem, se não consegue sequer suportar a ideia de sua própria finitude? Como podemos viver bem, se estamos presos a discursos que não nos deixam sentir, que não nos deixam desejar, que não nos deixam viver?
No final, a pergunta não é como resgatar a tensão. Isso seria ingenuidade. O excesso de discurso já esterilizou essa possibilidade. O que resta é tentar sobreviver ao vazio. Talvez aceitar os limites, encarar a morte não como algo distante, mas como a força que dá sentido à vida. Porque no fim, não há discurso que substitua a experiência de viver.
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Referências
Twenge, Jean M. iGen: Why Today's Super-Connected Kids Are Growing Up Less Rebellious, More Tolerant, Less Happy – and Completely Unprepared for Adulthood. New York: Atria Books, 2017.
Freud, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Han, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
Becker, Ernest. A Negação da Morte. São Paulo: Record, 2007.
José Antônio Lucindo da Silva
CRP: 06/172551
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@joseantoniolucindodasilva
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