Por muito tempo venho refletindo sobre a desconexão entre o discurso mediático e a materialidade concreta que deveria sustentar a nossa existência. A recente publicação de um artigo na Forbes Brasil (https://forbes.com.br) apontando como a inteligência artificial tem contribuído para o rebaixamento cognitivo reforça algo que há tempos tenho explorado em meus próprios discursos: a perda da capacidade de questionar e a superficialidade que permeia nossas interações contemporâneas.
Não é de hoje que nossa atenção foi sequestrada por narrativas rápidas, planificadas, e frequentemente alienadas da realidade concreta. Byung-Chul Han já nos alertava sobre os perigos de uma sociedade da positividade, onde tudo precisa ser fluido, leve e ininterrupto. Nessa lógica, a tensão, tão necessária para o surgimento do desejo e da criatividade, é eliminada. Han nos ensina que sem tensão, sem conflito, o desejo perde sua força, e o indivíduo se torna um mero objeto de consumo em redes mediáticas onde o espetáculo é soberano.
Esse "picadeiro", como costumo mencionar, está lotado. Todos buscam a validação imediata, curtidas, compartilhamentos — qualquer coisa que reafirme a existência discursiva de um "eu" cada vez mais frágil e alienado da materialidade. Ernst Becker descreve isso brilhantemente em sua obra, ao apontar que o "eu" idealizado é sustentado por mentiras caractereológicas. Essa mentira nos dá a ilusão de estabilidade, mas não resiste ao confronto com a realidade da finitude.
O que acontece, então, quando essa fragilidade é combinada com o uso crescente de ferramentas tecnológicas, como a inteligência artificial? O artigo da Forbes sugere que estamos delegando cada vez mais nossas capacidades cognitivas à tecnologia, o que resulta em um fenômeno chamado descarregamento cognitivo. Delegamos tanto que não sabemos mais como duvidar. A dúvida, que deveria ser um motor para a reflexão, é hoje evitada porque mascara o desespero — um desespero que, como Cioran aponta, está no centro da nossa condição humana.
Mas, ironicamente, ao tentarmos evitar esse desespero, nos tornamos ainda mais alienados. A dependência das telas, que atingem áreas de prazer em nossos cérebros, não é apenas um hábito; tornou-se uma nova droga. E, como qualquer dependência, ela exige doses cada vez maiores para manter a sensação de controle ou satisfação. Não há tempo para questionar. E quando alguém tenta, como eu faço aqui, a profundidade é automaticamente desacreditada: "Foi ele ou a inteligência artificial que escreveu isso?" A dúvida que poderia enriquecer o discurso é transformada em um mecanismo de invalidação.
Essa superficialidade não é um fenômeno novo, como eu já vinha apontando há tempos. A internet, que poderia ser um espaço de troca e reflexão, foi instrumentalizada para sustentar essa lógica do espetáculo. Como Zygmunt Bauman observou em sua análise da modernidade líquida, vivemos em um tempo em que tudo é descartável, efêmero, e o outro foi transformado em funcionalidade. O outro não é mais alguém com quem estabelecemos uma relação autêntica; tornou-se apenas mais um "negócio". O "novo normal", pós-pandemia, apenas intensificou essa dinâmica.
Freud, em seu clássico "O Mal-Estar na Civilização", afirmou que cada época tem seus transtornos. Os nossos são evidentes: ansiedade, fobias, inseguranças, uma epidemia de sofrimento psíquico que parece crescer na mesma medida em que nossas conexões se tornam mais rasas e mediadas por tecnologias. Essa epidemia não é apenas o reflexo de um "eu" desfragmentado; é o sintoma de uma sociedade que perdeu o contato com sua materialidade. O que significa isso? Significa que deixamos de fazer as perguntas mais essenciais: "O que vou comer amanhã?", "Que tipo de trabalho vou ter?", "Como vou sustentar minha existência?"
Essas perguntas, ancoradas na materialidade da vida, foram substituídas por discursos que nada acrescentam ao prato vazio de milhões. Enquanto discutimos banalidades nas redes sociais, a fome, a crise ambiental e as desigualdades estruturais permanecem sem solução. Por quê? Porque essas questões exigem reflexão, tempo, tensão — e a sociedade da positividade não tem espaço para isso.
Ao me debruçar sobre essas questões, percebo que a superficialidade discursiva não é apenas um problema cognitivo, mas também ético. Se não resgatarmos a tensão necessária para questionar, duvidar e criar, estaremos condenados a uma existência vazia, mediada por tecnologias que, como a inteligência artificial, são reflexos das nossas próprias limitações. A inteligência artificial, como ressaltei anteriormente, não é a vilã; ela é apenas uma ferramenta construída por nós. Se ela reflete o rebaixamento cognitivo, é porque nós, enquanto sociedade, escolhemos essa superficialidade.
Portanto, quando penso na reflexão proposta pela Forbes, não vejo nela uma revelação, mas uma confirmação do que venho argumentando: estamos fugindo do desespero, da dúvida, e, ao fazê-lo, nos alienamos cada vez mais daquilo que nos torna humanos. O desafio é resgatar a materialidade, a profundidade, e aceitar que a vida, como Sartre dizia, só faz sentido se for vivida no aqui e agora, com todas as suas contradições e tensões.
Se a dúvida, como Cioran sugere, é uma máscara para o desespero, talvez o caminho não seja eliminá-la, mas abraçá-la como parte da experiência humana. Afinal, é no desespero que encontramos a tensão necessária para criar, para desejar, para viver. O espetáculo pode estar cheio, mas ainda há espaço para a reflexão, para a resistência, para a construção de um discurso que vá além do vazio.
Referências
Bauman, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
Becker, Ernest. A Negação da Morte. Rio de Janeiro: Record, 1973.
Byung-Chul Han. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
Freud, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Cioran, Emil. História e Utopia. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
José Antônio Lucindo da Silva
CRP: 06/172551
Email: joseantoniolcnd@gmail.com
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