Avançar para o conteúdo principal

A Ilusão da Contenção: Uma Crítica a A Onda e o Maior Dilema do Século XXI (Hassabis, 2024)



A Ilusão da Contenção: Uma Crítica a A Onda e o Maior Dilema do Século XXI (Hassabis, 2024)

Demis Hassabis, em A Onda e o Maior Dilema do Século XXI (2024), propõe um debate sobre a expansão das novas tecnologias, especialmente a inteligência artificial e a biologia sintética, alertando para os riscos inerentes ao seu desenvolvimento descontrolado. Desde o prólogo até o capítulo 2, ele argumenta que estamos à beira da mais significativa transformação da humanidade e que, se não impusermos algum nível de contenção, essas tecnologias podem escapar ao nosso controle e causar consequências catastróficas. No entanto, sua narrativa se constrói sobre uma contradição central: ele defende a necessidade de conter um processo que ele mesmo admite ser historicamente incontrolável.

Hassabis inicia sua análise explorando a "armadilha da aversão ao pessimismo" – a tendência humana de evitar cenários negativos mesmo quando há evidências alarmantes sobre sua possibilidade. Ele relata um seminário onde especialistas apresentaram um risco real: a possibilidade de uma única pessoa, com motivação suficiente, criar uma catástrofe biotecnológica de escala global. A reação do público foi uma mistura de indiferença e negação, algo que o autor interpreta como uma falha cognitiva coletiva. No entanto, esse comportamento pode ser visto de outra maneira: talvez a apatia não seja uma recusa irracional, mas sim uma aceitação silenciosa de que não há saída. Afinal, se a história nos ensina que toda tecnologia de propósito geral se prolifera e se torna incontrolável, por que essa onda seria diferente?

Nos capítulos seguintes, o autor tenta construir uma estrutura de contenção para essa nova revolução tecnológica. Ele cita a energia nuclear como um exemplo de contenção bem-sucedida, argumentando que tratados internacionais e a dificuldade técnica para fabricar armas nucleares impediram sua proliferação desenfreada. Mas essa comparação é falha. O que impediu que as armas nucleares se disseminassem não foi apenas a regulação, mas o fato de que sua produção exige recursos e infraestrutura altamente especializados, tornando seu acesso limitado. Já a IA e a biologia sintética seguem uma lógica inversa: à medida que avançam, tornam-se mais acessíveis, baratas e descentralizadas. Se a história da tecnologia mostra que sua evolução segue padrões de proliferação exponencial, a contenção se torna mais um desejo do que uma estratégia concreta.

O problema essencial do livro até aqui não é a identificação do perigo, mas a ilusão de controle que o autor insiste em sustentar. Ele reconhece que nunca fomos capazes de conter o avanço de tecnologias fundamentais e que as ondas tecnológicas anteriores moldaram a civilização de forma irreversível. Mesmo assim, ele sugere que dessa vez será diferente, que podemos criar mecanismos para impedir o caos. Mas esse argumento parece mais uma tentativa de acalmar o pânico do que uma proposta realista.

A ironia maior é que, enquanto Hassabis critica aqueles que negam os riscos da nova onda tecnológica, ele mesmo pode estar caindo em outra armadilha: a do tecnossalvacionismo disfarçado de precaução. Acreditar que podemos controlar essa onda apenas porque queremos controlá-la é uma forma de pensamento mágico, não uma solução. A tecnologia não se curva à moralidade ou à vontade humana – ela se expande conforme os incentivos econômicos e políticos que a impulsionam.

Se a contenção nunca foi verdadeiramente possível, por que continuar insistindo nela? Talvez porque a alternativa seja inaceitável: admitir que estamos diante de um fenômeno que já escapou das nossas mãos e cuja única certeza é sua aceleração. O verdadeiro dilema não é se devemos ou não conter essa onda, mas se estamos prontos para aceitar que nunca tivemos essa capacidade.

Até aqui, A Onda e o Maior Dilema do Século XXI me parece mais um exercício de gerenciamento discursivo do medo do que uma proposta de ação viável. Continuarei a leitura para ver se, nos capítulos seguintes, o autor consegue escapar dessa contradição.

#maispertodaignorancia


Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...