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Ócio e Negócio: O Teatro Mediático da Solidão Plasmada



Ócio e Negócio: O Teatro Mediático da Solidão Plasmada

Introdução: A Grande Ironia do Ócio

O ócio, esse espaço outrora sagrado para reflexão, descanso e introspecção, agora é um espetáculo digital, uma performance que alimenta os algoritmos. A ironia maior é que, ao tentarmos escapar da pressão produtiva, caímos em outra armadilha: transformamos o ócio em um negócio, não mais no sentido clássico de trabalho remunerado, mas como moeda simbólica no teatro mediático das redes sociais. Afinal, quem está realmente só quando se tem uma tela como companhia e milhões de espectadores invisíveis?


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O Ócio como Moeda Discursiva

O que antes era o intervalo necessário entre a produtividade e o nada, hoje é capturado pelas redes sociais. Publicar um momento de ócio – um café solitário, uma viagem para "desconectar", ou mesmo uma reflexão profunda – se transforma em um ato performativo. Curtidas, comentários e compartilhamentos conferem valor ao momento que, ironicamente, deveria ser privado. O ócio digitalizado não é mais um espaço para o ser, mas um palco para o parecer.

Como Byung-Chul Han pontua em A Sociedade do Cansaço, vivemos na era do desempenho, onde até o descanso precisa ser útil. O ócio não escapa dessa lógica; ele é sequestrado, embalado e vendido de volta para nós em pacotes "autênticos", como meditações guiadas, apps de mindfulness e viagens transformadoras. Afinal, como resistir ao apelo de um ócio rentável que promete nos desconectar, enquanto secretamente nos conecta ainda mais ao sistema?


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A Solidão Impossível Frente à Tela

Quem nunca se sentiu "sozinho" enquanto interagia com uma tela? A grande contradição é que essa solidão é, na verdade, uma ilusão. O momento de ócio diante da tela é habitado por discursos, algoritmos e olhares mediáticos. Cada clique, cada palavra digitada, alimenta uma máquina que transforma a solidão em dado, e o dado em lucro.

Como Shakespeare nos lembra, "o mundo inteiro é um palco", mas hoje esse palco é mediático. Somos atores e espectadores simultaneamente, encenando nossos momentos de ócio para uma audiência invisível. E, ao contrário do teatro clássico, aqui o roteiro não é nosso: ele é ditado pelas métricas e tendências do mercado digital.


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Negócio: A Negação do Ócio

O negócio, por definição, nega o ócio. Ele exige ação, produção, propósito. Porém, no ambiente digital, o negócio se apropriou do ócio, transformando até o não fazer em fazer. Publicar uma foto relaxando ao pôr do sol ou um texto reflexivo não é mais um ato de expressão pura; é uma transação simbólica que fortalece a lógica mercantil.

A ironia maior é que, mesmo ao criticar esse sistema, estamos participando dele. Este texto, por exemplo, escrito em um momento que poderia ser de ócio, é inserido na mesma lógica que ele pretende expor. Ao refletir sobre o ócio, estamos transformando-o em negócio, uma moeda discursiva que alimenta o ciclo que tanto criticamos.


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A Cultura Woke e a Armadilha do Cancelamento

E o que dizer da cultura woke, que também desempenha seu papel nesse teatro? Ela trouxe para o palco questões urgentes, mas logo foi apropriada pelo mercado, tornando-se um produto rentável. Empresas adotaram discursos de inclusão e diversidade, mas quando esses mesmos discursos ameaçam o consumo, a rejeição é imediata.

O cancelamento, arma discursiva poderosa da cultura woke, muitas vezes atinge os próprios produtos que critica. Isso cria um paradoxo: ao abraçar o discurso, o capitalismo tenta se renovar, mas ao ser criticado por ele, revela suas fragilidades. Nissan, Toyota e Ford são exemplos de corporações que agora rejeitam esses discursos, percebendo que podem minar a produtividade e alienar consumidores.


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O Ócio Como Utopia Perdida

O que resta, então, do ócio? Talvez apenas uma utopia perdida, uma ideia que só existe na nostalgia. O ócio autêntico, aquele espaço de desconexão real, parece impossível em um mundo mediado por telas e algoritmos. Estamos condenados a performar, a transformar cada momento de pausa em um conteúdo rentável, a encenar nossa solidão para que ela nunca seja de fato só nossa.


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Conclusão: O Palco Continua Montado

Shakespeare tinha razão: o mundo é um palco, e todos somos atores. Mas no teatro mediático das redes sociais, o ócio é a peça mais irônica. Enquanto acreditamos estar sozinhos, somos observados. Enquanto criticamos o sistema, o alimentamos. A grande questão que fica é: há como sair desse ciclo? Ou estamos destinados a viver essa ironia, onde até a tentativa de fuga se transforma em parte do espetáculo?


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Referências

Byung-Chul Han. A Sociedade do Cansaço. Vozes, 2015.

Guy Debord. A Sociedade do Espetáculo. Contraponto, 1997.

William Shakespeare. Como Gostais. Tradução de Lawrence Flores Pereira, 2016.

Zygmunt Bauman. Vida Líquida. Zahar, 2005.

#maispertodaignorancia
@joseantoniolucindodasilva


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