Neste texto, proponho uma reflexão irônica e comparativa sobre a obsessão humana em colonizar Marte enquanto negligenciamos desertos habitáveis aqui na Terra. Usando como exemplo La Rinconada, a cidade mais alta do mundo, com suas condições extremas, argumento que nossa busca por riqueza e progresso muitas vezes ignora o que está ao nosso alcance e que, paradoxalmente, investimos mais no inalcançável do que no possível.
Confesso que não consigo deixar de me perguntar: por que Marte? Não me entenda mal, admiro o esforço humano em explorar o universo e conquistar novos horizontes. Mas será que já resolvemos tudo por aqui? Recentemente, enquanto lia sobre La Rinconada, no Peru, percebi que talvez não seja preciso viajar milhões de quilômetros para encontrar um ambiente tão desafiador quanto o Planeta Vermelho.
La Rinconada é um lugar fascinante em sua crueldade. A 5.100 metros acima do nível do mar, os habitantes dessa cidade enfrentam condições que fazem qualquer colônia marciana parecer um sonho distante. A temperatura média? Congelante. O ar? Rarefeito. A vida? Uma batalha constante. E, no entanto, ao contrário de Marte, La Rinconada oferece algo palpável: ouro.
Olhando para essa cidade, percebo uma ironia que não consigo ignorar. Enquanto bilhões de dólares são gastos em projetos para terraformar Marte, La Rinconada mal conta com infraestrutura básica. Por que investir em um planeta sem ar, água ou vida, quando temos desertos aqui mesmo que, com algum esforço, poderiam ser transformados em lugares habitáveis? O deserto terrestre tem ar, algo que Marte jamais oferecerá sem altos custos.
A questão vai além de La Rinconada. É sobre nossa capacidade de nos deslumbrarmos com o inalcançável e ignorarmos o que está à nossa frente. Colonizar Marte soa épico, enquanto revitalizar regiões esquecidas no nosso próprio planeta parece uma tarefa banal. É como se quiséssemos escapar das contradições terrenas em busca de uma utopia cósmica, esquecendo que as mesmas contradições nos seguirão para onde quer que formos.
Ainda assim, não consigo culpar totalmente essa mentalidade. Talvez a busca por Marte seja menos sobre o espaço e mais sobre nós mesmos, sobre nossa eterna insatisfação. É mais fácil sonhar com um futuro interplanetário do que encarar as desigualdades e dificuldades que moldam o presente. Mas ao visitar La Rinconada, pelo menos através das palavras de quem esteve lá, vejo uma verdade inescapável: o deserto em Marte é silencioso, enquanto o deserto em La Rinconada é um grito por atenção.
No fim, não estou dizendo para abandonarmos Marte, mas talvez devêssemos equilibrar nossas prioridades. Se podemos imaginar uma colônia em Marte, por que não podemos imaginar uma La Rinconada melhor? O problema, afinal, não está em Marte ou na Terra, mas na nossa dificuldade em investir no que realmente importa: o tempo e o espaço imediato que habitamos.
Referências
BYUNG-CHUL HAN. No Enxame: Perspectivas do Digital. Petrópolis: Vozes, 2018.
GÓMEZ, J. La Rinconada: Ouro e Sobrevivência nos Andes. Lima: Ediciones Andinas, 2019.
SOUZA, R. A Terra Como Ela É: Reflexões Sobre Sustentabilidade. Porto Alegre: Artesãos do Saber, 2021.
#maispertodaignorancia
@joseantoniolucindodasilva
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