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A Experiência Amorosa no Ambiente Digital: Superficialidade Discursiva e Fragilidade dos Laços Humanos


No mundo contemporâneo, as relações amorosas e sociais passaram por transformações significativas, principalmente com o surgimento e a consolidação do ambiente digital. O que antes era construído através de interações diretas e experiências vividas, hoje é mediado por redes sociais e algoritmos que moldam nossas interações e expectativas. A experiência amorosa, dentro dessa realidade, sofre os impactos da superficialidade discursiva e da fragilidade dos laços humanos, como bem observado por autores como Zygmunt Bauman e Byung-Chul Han.

A Superficialidade do Discurso e a Mercantilização do Outro

Uma das principais características das relações contemporâneas é a crescente superficialidade das interações. Conforme Bauman discute em Amor Líquido, os laços humanos tornaram-se frágeis e descartáveis, refletindo uma sociedade que valoriza o consumo rápido e a satisfação imediata. Essa fragilidade é ainda mais evidente no ambiente digital, onde a construção discursiva predomina sobre as experiências materiais. Relações amorosas, muitas vezes idealizadas nas redes sociais, são moldadas por expectativas e narrativas distantes da realidade.

A discursividade nas plataformas digitais cria uma versão idealizada do "eu" e do "outro", alimentada por algoritmos que apresentam conexões que correspondem a expectativas superficiais. Essa mediação algorítmica reforça uma homogeneidade de pensamento e comportamento, corrompendo o desejo genuíno. O outro deixa de ser um indivíduo com identidade própria e passa a ser uma funcionalidade dentro de uma narrativa que atende às necessidades materiais e discursivas.

Byung-Chul Han, em Sociedade do Cansaço, aponta que vivemos em uma era dominada pelo excesso de positividade, eliminando tensões e frustrações. No contexto amoroso, isso se traduz em relações construídas para evitar conflitos. Qualquer desconforto é rapidamente rotulado como "toxicidade", resultando no descarte do outro sob o pretexto de evitar sofrimento. Essa fuga da tensão elimina a profundidade das relações, tornando-as superficiais e utilitárias.

A Função Algorítmica do Outro nas Relações Digitais

Nas redes sociais, a lógica de interação é moldada por algoritmos que sugerem conexões baseadas em afinidades preexistentes. Ao nos apresentar "sugestões de amizade" ou potenciais parceiros amorosos, o algoritmo reforça nossas expectativas, criando uma ilusão de escolha e liberdade. Contudo, ao eliminarmos a alteridade e a diferença, corrompemos o desejo, que necessita de tensão e contrariedade para se manifestar plenamente.

A experiência amorosa no ambiente digital é, portanto, uma experiência de controle. O outro, que deveria expandir nossa compreensão de nós mesmos, é reduzido a uma funcionalidade que atende às nossas demandas. Quando essas demandas não são atendidas, o relacionamento é rapidamente descartado, em um ciclo contínuo de consumo de interações superficiais.

A Crise do Desejo e a Falta de Profundidade nas Relações

Byung-Chul Han, em A Agonia de Eros, explora a crise do desejo na sociedade contemporânea. Ele argumenta que a eliminação da tensão e do conflito nas relações amorosas resulta em uma erosão do desejo genuíno. As redes sociais priorizam satisfação imediata e prazer superficial, corroendo a possibilidade de encontros profundos e autênticos.

A discursividade amorosa nas redes sociais reflete esse ciclo de consumo emocional. Publicações sobre relacionamentos frequentemente giram em torno de validação superficial por meio de curtidas e comentários. Discussões sobre "pessoas tóxicas" ou "relacionamentos negativos" evitam enfrentar as contradições inerentes às relações humanas. Ao invés de abraçar o conflito como parte do crescimento, buscamos eliminar qualquer desconforto, alienando-nos da profundidade que um verdadeiro encontro exige.

Nesse sentido, as relações amorosas no ambiente digital não são fluídas, como sugerido por Bauman em Amor Líquido. Elas são interrompidas pela lógica da descartabilidade e da busca por prazer imediato. A ausência de frustração e contrariedade corrompe a essência das relações, tornando-as vazias e funcionais.

Conclusão: O Outro como Função e a Erosão do Desejo

A experiência amorosa no ambiente digital reflete uma sociedade onde o outro é instrumentalizado para atender às demandas pessoais e discursivas. A mediação algorítmica das redes sociais reforça essa lógica, eliminando a alteridade e a tensão essenciais para o desejo genuíno. Como resultado, as relações amorosas tornam-se superficiais, descartáveis e vazias de profundidade.

Os discursos contemporâneos sobre "toxicidade" e bem-estar emocional frequentemente escondem a fuga do confronto com a realidade material das relações humanas. Ao evitar o sofrimento e o conflito, eliminamos a possibilidade de um encontro real com o outro. Assim, a experiência amorosa se dissolve em uma sucessão de interações superficiais, onde o desejo é corrompido pela busca constante de satisfação imediata.

Referências

Bauman, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

Han, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

Han, Byung-Chul. A Agonia de Eros. Lisboa: Relógio D’Água, 2018.


José Antônio Lucindo da Silva CRP:06/172551
joseantoniolcnd@gmail.com
#maispertodaignorancia @joseantoniolucindodasilva




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