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A Crise de Representação: Fake News, Narrativas Sistêmicas e a Desconexão com a Materialidade



Introdução

No centro da contemporaneidade, somos confrontados por uma crise de representação que atravessa o sistema político, jurídico e econômico. Narrativas, muitas vezes institucionalizadas, descolam-se da realidade material vivida pelas pessoas. Este artigo explora como os discursos econômicos, as regulações propostas no âmbito jurídico e as promessas políticas acabam configurando um sistema de "fake news estrutural", em que os dados e as expectativas manipulam percepções, mas não transformam a realidade concreta.

O Discurso Econômico como Fake News Sistêmica

A economia contemporânea é, em grande parte, representada por abstrações algorítmicas – índices, taxas e projeções – que tornam-se inacessíveis para a maioria da população trabalhadora. Embora dados sobre crescimento do PIB, inflação e desemprego sejam amplamente divulgados, eles frequentemente ignoram a materialidade vivida pelas pessoas, como a precariedade do trabalho, os baixos salários e a falta de segurança financeira.

Esse desencontro cria um paradoxo: por um lado, os números propagam narrativas de prosperidade; por outro, a realidade cotidiana desmente essas promessas. Como destaca o filósofo Byung-Chul Han, em Sociedade do Cansaço (2015), a lógica da performance impõe uma constante busca por resultados, enquanto a materialidade da vida cotidiana é negligenciada em prol de discursos abstratos e desconectados.

A Sazonalidade da Prosperidade no Brasil

No contexto brasileiro, a promessa de prosperidade é reforçada por ciclos sazonais. O aumento de empregos temporários no final do ano e as projeções de melhora econômica criam uma sensação ilusória de estabilidade. Contudo, essas narrativas rapidamente se desmoronam com o término do período festivo, deixando a classe trabalhadora à deriva até o carnaval. Essa sazonalidade, muitas vezes institucionalizada no discurso midiático e governamental, não contribui para a construção de políticas estruturais de longo prazo. Como pontua Jessé Souza, em A Elite do Atraso (2017), a elite brasileira frequentemente manipula narrativas econômicas para manter privilégios e evitar transformações sociais profundas.

Fake News Institucionalizadas

A discussão sobre fake news é amplamente limitada às redes sociais e aos comportamentos individuais. No entanto, a desinformação mais perniciosa pode ser encontrada nas narrativas promovidas por instituições econômicas, políticas e jurídicas. Quando governos divulgam dados econômicos otimistas sem impacto real na vida das pessoas, não estão, também, produzindo fake news? E, quando o sistema jurídico, como no caso do Marco Civil da Internet, propõe regular apenas o discurso digital, ignora-se que a raiz da desinformação pode estar no próprio sistema.

A Contradição da Regulação Jurídica

A atuação do ministro Alexandre de Moraes, ao propor medidas para controlar a desinformação digital, exemplifica as limitações de uma abordagem que ignora a profundidade do problema. Ao focar nas grandes plataformas comerciais, como Facebook e X (antigo Twitter), a regulação falha em abarcar camadas mais profundas da internet, como as darknets e deep webs. Mais importante, ela não enfrenta a questão central: a desinformação institucionalizada, que muitas vezes é legitimada por narrativas governamentais e econômicas.

Materialidade e Representação

A desconexão entre discurso e materialidade é o cerne dessa crise. Qualquer narrativa que não esteja ancorada na experiência concreta da população carece de legitimidade. Como argumenta Marilena Chauí, em Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária (2000), as elites e as instituições brasileiras muitas vezes constroem narrativas que não dialogam com a realidade da maioria, perpetuando desigualdades e alienação.

Conclusão

A crise de representação que enfrentamos não pode ser reduzida a fake news digitais. Ela é, antes de tudo, uma crise de narrativa, em que sistemas inteiros produzem discursos descolados da materialidade vivida. Sem um esforço genuíno para reconectar os discursos jurídico, político e econômico à experiência concreta das pessoas, continuaremos presos em um ciclo de promessas vazias e desinformação institucionalizada. O combate à desinformação precisa começar por uma revisão crítica das próprias estruturas que sustentam nossas narrativas públicas.

Referências

1. Chauí, M. (2000). Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.


2. Han, B. C. (2015). Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes.


3. Souza, J. (2017). A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Estação Brasil.


4. Han, B. C. (2020). A Morte do Eros. Lisboa: Relógio D’Água.


5. Souza, J. (2021). Como o Racismo Criou o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil.



@joseantoniolucindadasilva 
#maispertodaignorancia




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