Introdução
Em tempos de discussões sobre a redução da jornada de trabalho e os direitos dos trabalhadores, frequentemente nos deparamos com uma lacuna entre a discursividade política e a materialidade concreta da vida de determinados grupos, como os microempreendedores e trabalhadores de plataformas digitais. O Uber, os entregadores de aplicativos e outros microempreendedores personificam um paradoxo do nosso tempo: a retórica do empreendedorismo como sinônimo de liberdade contrasta com a realidade de autoexploração e precariedade. Este texto busca refletir sobre como as narrativas político-econômicas, ao ignorarem essas condições, podem reforçar desigualdades estruturais, especialmente dentro da lógica da sociedade digital, onde até mesmo o ócio é convertido em mercadoria.
O Empreendedor de Si Mesmo e a Nova Escravidão
Byung-Chul Han, em sua análise sobre a sociedade do cansaço, introduz o conceito de “empreendedor de si mesmo”, um sujeito que, acreditando em sua autonomia, submete-se a jornadas exaustivas e demandas incessantes em nome de uma liberdade ilusória. No caso do Brasil, microempreendedores como os motoristas de Uber e entregadores de aplicativos exemplificam essa dinâmica. Formalizados como MEI, são apresentados como "empresários", mas sem direitos trabalhistas básicos. Trabalham frequentemente 12, 14 ou até 18 horas por dia, sem descanso adequado, para garantir uma renda mínima em um mercado que os explora pela lógica da oferta e demanda.
Discursividade e Métricas Desconectadas
O discurso político frequentemente celebra avanços econômicos utilizando métricas superficiais, como o crescimento do número de microempreendedores ou as melhorias sazonais no índice de desemprego. Contudo, essas métricas ignoram a realidade precária desses trabalhadores. No último trimestre do ano, por exemplo, há um aumento temporário de empregos devido às festas de fim de ano, mas grande parte dessas vagas é sazonal e desaparece no início do ano seguinte, reforçando um ciclo de insegurança econômica.
Além disso, iniciativas como a redução da jornada de trabalho dificilmente beneficiam esses microempreendedores. Motoristas de Uber e entregadores não têm a opção de trabalhar menos dias na semana; sua renda depende de uma disponibilidade constante, muitas vezes em condições adversas.
Ócio Criativo ou Negócio Oculto?
A promessa de um tempo livre para descanso ou criatividade, como defendido por Domenico De Masi em seu conceito de "ócio criativo", esbarra em uma realidade tecnológica na qual o ócio se converte em mais um espaço de exploração. Byung-Chul Han descreve esse fenômeno como a transformação do ócio em “negócio”, pois, ao estarem conectados às plataformas digitais, os indivíduos continuam a gerar dados e metadados, alimentando algoritmos e perpetuando a lógica da exploração. Para os trabalhadores de plataformas, o tempo livre não é uma possibilidade viável; ele é simplesmente inexistente.
O Politicamente Correto e a Reflexão Necessária
Essa análise não busca criticar leis ou propostas que visem melhorar as condições de trabalho. O problema está na desconexão entre a discursividade dessas iniciativas e a materialidade concreta de grupos específicos. O politicamente correto, inserido nessa discursividade, muitas vezes impede uma análise mais profunda e honesta.
Questionar as condições dos microempreendedores não é um ato antipolítico ou antidemocrático, mas um esforço para compreender as contradições de um sistema que os exalta como símbolo de autonomia enquanto os mantém em uma condição de servidão moderna.
Considerações Finais
O microempreendedorismo, especialmente no contexto de plataformas digitais, não oferece a liberdade que promete. Pelo contrário, ele representa uma nova forma de exploração, onde o trabalhador é ao mesmo tempo patrão e escravo de si mesmo. Enquanto o discurso político ignora essas contradições e as plataformas lucram com a precariedade, a realidade desses trabalhadores permanece invisível.
Portanto, qualquer discussão sobre redução de jornadas, tempo livre ou melhoria das condições de trabalho precisa considerar a realidade material dos microempreendedores. Caso contrário, continuaremos reproduzindo narrativas que não alcançam aqueles que mais precisam.
Referências
Han, B.-C. (2015). A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Editora Vozes.
Zuboff, S. (2020). A Era do Capitalismo de Vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca.
De Masi, D. (2000). O Ócio Criativo. Rio de Janeiro: Sextante.
Lasch, C. (1991). A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro: Imago.
#maispertodaignorancia @joseantoniolucindodasilva
Comentários
Enviar um comentário