O beijaço pago e a moral de vitrine: quando a empatia é terceirizada pelo Pix
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https://g1.globo.com/pop-arte/diversidade/noticia/2025/08/07/o-que-e-capacitismo-entenda-debate-nas-redes-apos-nattan-pagar-r-1-mil-para-homem-beijar-mulher-com-nanismo.ghtml
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O episódio é simples e grotesco na mesma medida: um cantor paga R$ 1.000 para um homem beijar uma mulher com nanismo. O gesto, aparentemente “generoso” ou “divertido”, abre uma fissura incômoda na vitrine moral das redes. Não é só sobre capacitismo — embora seja, e muito. É sobre como, no espetáculo contemporâneo, a empatia se converte em moeda e a dignidade, em performance rentável. O beijo não é afeto, é transação.
Byung-Chul Han já diagnosticou, em A expulsão do outro, que vivemos num tempo em que a alteridade é corroída: o outro só nos interessa enquanto extensão do nosso próprio reflexo, enquanto alimenta nossa autoimagem luminosa diante da plateia digital. Não beijamos para sentir — beijamos para provar que beijamos, e de preferência com um Pix de fundo para garantir que o gesto não escape à lógica mercantil.
Bauman, em O mal-estar da pós-modernidade, descreve a transformação de vínculos em conexões descartáveis. Aqui, o corpo do outro é tratado como um “objeto-evento”: algo a ser vivido no instante, registrado, monetizado e imediatamente esquecido. O homem que recebeu o dinheiro não ganhou um momento de intimidade — ganhou uma moeda pela exposição. A mulher com nanismo não foi participante de uma cena espontânea de afeto, mas o elemento central de um “conteúdo” cujo valor estava na anomalia percebida pelo público.
A estética do gesto é a mesma que move campanhas publicitárias “inclusivas” que, no fundo, não querem integrar, mas explorar: é a instrumentalização da diferença como narrativa para gerar engajamento, cliques, comentários indignados ou comovidos. Zuboff chamaria isso de “capitalismo de vigilância” aplicado à emoção: cada lágrima, sorriso ou repulsa é matéria-prima para a engrenagem que transforma afetos em métricas.
Freud, em O mal-estar na civilização, talvez nos lembrasse que a moralidade, quando não nasce de um trabalho interno de sublimação, torna-se mero verniz que disfarça impulsos mais primitivos. O ato de pagar por um beijo, ainda que sob a capa da diversão, expõe uma relação de poder crua: a que coloca um corpo como espetáculo e o outro como dono do roteiro. Não há troca simbólica — há apenas compra e venda de um instante que se quer inesquecível, mas que é planejado para ser viral.
Cioran escreveria que “toda compaixão é suspeita” quando precisa ser exibida. E é aí que a cena se agrava: a lógica digital premia o gesto gravado, não o gesto vivido. A humilhação não está só no ato em si, mas na sua eternidade digital — um beijo que, na economia simbólica das redes, jamais será esquecido, não pelo afeto, mas pela marca de diferença transformada em espetáculo.
A discussão sobre capacitismo, nesse contexto, não pode se limitar a reconhecer que há preconceito contra pessoas com deficiência. É preciso entender que, no regime atual de visibilidade, a luta contra o preconceito é muitas vezes sequestrada por performances que exploram justamente o que dizem combater. Como Marx apontaria, o capital não hesita em vender a própria crítica — e aqui a indignação vira combustível para o mesmo sistema que a gerou.
Nada disso é novo. O presente histórico apenas acelerou e amplificou o que antes se limitava ao bairro, ao círculo social, à fofoca. Agora, a transação é global, instantânea, e arquivada nos servidores que alimentam o mercado de dados. O beijo pago de hoje é o meme de amanhã e o case de marketing inclusivo de depois de amanhã.
A pergunta incômoda que fica: quem realmente lucra quando a dignidade é reduzida a entretenimento?
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HAN, Byung-Chul. A expulsão do outro. Petrópolis: Vozes, 2017.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2011.
Nota sobre o autor
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador do projeto “Mais perto da ignorância”. Argumenta na angústia como liberdade.
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