Avançar para o conteúdo principal

O algoritmo como destino: arquiteturas invisíveis e o valor do sujeito

O algoritmo como destino: arquiteturas invisíveis e o valor do sujeito
Introdução

Vivemos numa época em que não é mais possível distinguir o que é espontâneo do que é projetado, e não porque alcançamos algum estado filosófico elevado, mas porque a própria matéria das nossas interações — afetivas, políticas, econômicas — está moldada por arquiteturas invisíveis. Chamamos essas arquiteturas de plataformas, redes, aplicativos, mas a palavra mais honesta seria: sistemas de ranqueamento.

Não é preciso ser um paranoico digital para perceber que a visibilidade, o afeto e até a indignação são hoje administrados como um recurso econômico. Cathy O’Neil, em Algoritmos de Destruição em Massa, nos lembra que o ranqueamento não é um detalhe técnico, mas uma arma estatística que, sob o verniz da neutralidade matemática, distribui oportunidades, exclui corpos e captura subjetividades. E como toda arma bem calibrada, não erra o alvo: atinge preferencialmente os vulneráveis, os despossuídos, aqueles que não podem “otimizar” sua performance para o algoritmo.

Se Byung-Chul Han fala do panóptico digital e Zuboff denuncia o capitalismo de vigilância, O’Neil nos dá a chave pragmática: é a métrica que governa o valor do sujeito. Não o valor como conceito ético, mas o valor mensurável, transformável em moeda, cliques e influência.


Arquitetura algorítmica e ranqueamento

O ranqueamento não é um sintoma isolado: é a engrenagem que mantém o motor funcionando. Ao definir quem é “relevante” e quem deve permanecer invisível, os algoritmos de ranqueamento transformam o próprio conceito de mérito. Ele não se baseia mais na experiência vivida, mas na capacidade de gerar interações quantificáveis.

Essa lógica lembra a análise de André Green sobre o narcisismo de morte: a libido já não investe na relação com o outro, mas no reflexo distorcido que o sistema lhe devolve. Um perfil que “rende” vale mais que uma vida que pensa. O valor não está no conteúdo, mas na performance de engajamento — mesmo que seja um engajamento de ódio, medo ou escárnio.

Cathy O’Neil vai além: mostra que essas arquiteturas não são “neutras” nem “objetivas”. São construídas com vieses que se retroalimentam, criando círculos viciosos. Um bairro mal ranqueado para crédito recebe menos investimentos, o que piora sua condição, reforçando o mau ranqueamento. O mesmo vale para currículos preteridos por não atenderem a padrões de formatação ou léxico treinados pelo algoritmo.


Tensões psico-bio-sociais

Freud, em O Mal-estar na Civilização, identificou três fontes fundamentais de sofrimento humano: a fragilidade do corpo, a força da natureza e a dificuldade das relações sociais. A novidade do presente é que a tecnologia se infiltrou nas três:

Na fragilidade do corpo, pela medicalização constante da produtividade;

Na força da natureza, pela exploração ambiental acelerada pelo imperativo do crescimento digital e físico;

Nas relações sociais, pelo deslocamento da convivência para ambientes mediados por métricas.


Bauman já alertava: a liquidez das relações transforma vínculos em conexões descartáveis. O que antes era amizade, hoje é “contato”. O que antes era debate, hoje é “comentário”. E cada um desses elementos é contabilizado, arquivado e utilizado como insumo para novas estratégias de captura.

Becker, ao falar da negação da morte, descreve a ilusão de imortalidade construída pela cultura. As redes amplificam isso ao prometerem permanência: sua foto, seu vídeo, seu comentário viverão “para sempre” — desde que você continue alimentando o sistema. Mas esse “para sempre” é a eternidade do armazenamento, não da experiência.


Materialidade e abismo

É preciso lembrar que tudo isso não ocorre num plano etéreo. A arquitetura digital não paira no ar; ela está ancorada em datacenters que consomem energia, em mineradoras de lítio que destroem ecossistemas, em trabalhadores precarizados que alimentam e moderam conteúdos.

A grande ironia é que a retórica do progresso digital ignora os dados materiais que a contradizem: crises ambientais, aumento da desigualdade, precarização do trabalho e deterioração da saúde mental. Os relatórios estão aí: índices de depressão e ansiedade crescem na mesma proporção do tempo médio conectado.

O vazio que emerge não é o de uma meditação zen, mas o de uma desconexão existencial. A experiência vivida — aquela que Cioran diria ser a única que conta — é substituída pela experiência projetada. O tempo presente deixa de ser vivido para ser imediatamente convertido em dado.


Conclusão

Talvez a pergunta não seja “como escapar” — porque o próprio ato de buscar fuga pode ser reabsorvido como produto —, mas “como resistir sem romantizar a resistência”. Resistir, aqui, não é desligar o wi-fi para “voltar a viver” num idílio pastoral, mas reconhecer que qualquer discurso que não parta da materialidade será capturado.

O abismo não é um defeito do sistema: é o sistema. E só é possível olhá-lo de frente se aceitarmos que não há neutralidade possível numa arquitetura construída para medir, classificar e rentabilizar até o silêncio.


Referências

BAUMAN, Zygmunt. Mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2007.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Porto Alegre: L&PM, 2010.

GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Rio de Janeiro: Imago, 1988.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyiné, 2015.

O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa. São Paulo: Rua do Sabão, 2020.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.


Nota do autor

José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo e criador do projeto Mais Perto da Ignorância, onde desenvolve textos, vídeos e podcasts que tensionam o pensamento contemporâneo.

Canais:

YouTube: @maispertodaignorancia

Spotify: Mais Perto da Ignorância

Blog: maispertodaignorancia.blogspot.com


Contato:

E-mail: maispertodaignorancia@gmail.com

Instagram: @joseantoniopsico


Palavras-chave:
 
algoritmos, vigilância, psicopolítica, ranqueamento, capitalismo digital, narcisismo de morte, mal-estar, materialidade, abismo.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...