Eu, o Produto: Ansiedade, Performatividade e o Abismo Digital
Resumo
Este artigo investiga a relação entre ansiedade, performatividade e materialidade no contexto contemporâneo, articulando dimensões psicológicas, biológicas e sociais. Parte-se da constatação de que a aceleração midiática e a liquidez identitária, mediadas por plataformas digitais, intensificam a pressão performática sobre o sujeito. Com base em autores como Freud, Byung-Chul Han, Bauman, Cioran, André Green, Élisabeth Roudinesco, Karl Marx e Shoshana Zuboff, e em dados recentes sobre saúde mental no Brasil e no mundo, analisa-se como a ansiedade deixa de ser apenas sintoma clínico para tornar-se método de funcionamento social. São considerados estudos sobre o impacto de vídeos acelerados no cérebro e as variações culturais no diagnóstico de ansiedade e depressão. Conclui-se que a performatividade digital sustenta uma economia psíquica fundada na exploração da visibilidade, na mercantilização dos dados e na alienação do próprio eu.
Palavras-chave: ansiedade, performatividade, capitalismo de vigilância, narcisismo, materialidade, saúde mental.
1. Introdução
Em 2023, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou que mais de 301 milhões de pessoas viviam com transtornos de ansiedade no mundo, sendo 19 milhões no Brasil — país que ocupa consistentemente as primeiras posições no ranking global (OMS, 2023). Dados do IBGE (PNAD Contínua, 2022) indicam que 9,3% dos brasileiros relataram diagnóstico médico de depressão, enquanto 10,2% declararam sintomas compatíveis com ansiedade grave. Esses números apontam para uma crise de saúde mental que não pode ser explicada apenas por fatores individuais: trata-se de um fenômeno que atravessa condições materiais, tecnológicas e culturais.
O Brasil apresenta um paradoxo: altos índices de analfabetismo funcional (cerca de 27% da população, segundo o INAF, 2022) coexistem com uma imersão massiva em plataformas digitais que exigem letramento crítico e habilidades de autorrepresentação. Esse cenário torna a performatividade digital não apenas um hábito, mas um imperativo social.
As reportagens “Saiba quais são os riscos para o cérebro de assistir vídeos acelerados” (Metrópoles, 2025) e “Ansiedade e depressão podem ser diagnosticados de formas diferentes” (Metrópoles, 2025) ilustram duas dimensões do problema: de um lado, a sobrecarga cognitiva da aceleração informacional; de outro, as dificuldades em avaliar o sofrimento psíquico quando ferramentas diagnósticas não capturam nuances culturais.
2. Materialidade, performatividade e o “eu” como mercadoria
Partindo de Marx (1867/2013), podemos afirmar que a performatividade digital constitui uma nova forma de alienação: o sujeito, ao postar, interagir ou “se expor”, gera valor econômico e simbólico que é capturado pelas plataformas. Essa “mais-valia atencional” (Zuboff, 2019) converte cada gesto em dado e cada dado em mercadoria.
Em Freud (1930), o mal-estar nasce da tensão entre impulsos humanos e exigências sociais. Hoje, essa tensão é modulada pela aceleração e pela pressão por visibilidade. O superego não apenas proíbe: ele exige produção incessante, num modelo que Han (2015) denomina “sociedade do desempenho”, onde a exploração é autoimposta sob o pretexto de liberdade.
Para Élisabeth Roudinesco (2016), o “eu soberano” digital é uma ilusão: o sujeito acredita controlar sua narrativa, mas adapta-se a formatos e métricas externas. O resultado é uma identidade performada, mas raramente enraizada na materialidade.
3. Aceleração cognitiva e impacto psicobiológico
O estudo do Metrópoles (2025) sobre vídeos acelerados mostra que a exposição contínua a estímulos rápidos afeta a regulação dopaminérgica e áreas como córtex pré-frontal e hipocampo, reduzindo tolerância ao tédio, prejudicando sono e aprofundando superficialidade cognitiva.
Essa aceleração molda o campo de possibilidades afetivas, deslocando o prazer da experiência para o prazer da velocidade. Trata-se de um “treinamento” neurológico para um ritmo artificial, que fragiliza a capacidade de lidar com o tempo orgânico da vida.
4. Diagnóstico cultural e invisibilidades
O segundo estudo do Metrópoles (2025) revela que escalas como BDI-II e BAI não têm equivalência perfeita entre países. Um sintoma pode ter interpretações distintas dependendo do contexto. Dalgalarrondo (2008) lembra que a expressão emocional é sempre culturalmente mediada; Bauman (2011) acrescentaria que a busca por métricas universais reflete uma liquidez institucional que privilegia comparabilidade em detrimento da precisão.
No Brasil, desigualdades estruturais dificultam acesso a cuidados, produzindo um contingente de sofrimento psíquico invisível às estatísticas e políticas públicas.
5. Liquidez, vigilância e narcisismo de morte
Bauman (2001) descreve a liquidez como a constante dissolução de formas sociais. Zuboff (2019) mostra como essa instabilidade é instrumentalizada pelo capitalismo de vigilância, que transforma experiências em dados preditivos.
Green (1988) identifica o “narcisismo de morte”: investimento libidinal voltado a imagens que não alimentam a vida. No ambiente digital, métricas substituem sentido, visibilidade substitui experiência — e a vitalidade psíquica se esvai.
6. O abismo como método
Cioran (2011) aponta que é no contato com o abismo que a consciência se intensifica. Kierkegaard (1844) lembra que a angústia é tanto paralisante quanto libertadora. Mas a discursividade midiática evita esse confronto, oferecendo distrações e narrativas de performance para manter o sujeito afastado da finitude.
Se “a única vida vivida é a que ficou para trás”, o presente torna-se um espaço de gestão da ansiedade, não de realização. A ansiedade é, assim, recurso produtivo para a engrenagem econômica, e não apenas um efeito colateral.
7. Convergências teóricas e síntese crítica
Freud descreve o mal-estar estrutural; Han revela sua intensificação pelo excesso; Bauman mostra a instabilidade como condição; Roudinesco e Green alertam para a alienação da identidade; Marx denuncia a captura do valor produzido; Zuboff explicita o mecanismo técnico dessa captura; Cioran e Kierkegaard lembram que só o contato com a angústia possibilita consciência — justamente o contato que o sistema contemporâneo busca evitar.
Essas leituras convergem para um diagnóstico: a ansiedade atual é simultaneamente sintoma, mercadoria e método. Sua manutenção interessa a estruturas que dependem de sujeitos conectados, produtivos e visíveis, mas emocionalmente instáveis.
8. Conclusão
O sujeito contemporâneo vive um duplo deslocamento: no plano material, sua força de trabalho — inclusive a “trabalho de si” — é mediada e modulada digitalmente; no plano simbólico, sua identidade é constantemente reconfigurada para atender a critérios externos.
O enfrentamento da ansiedade, portanto, não pode restringir-se ao tratamento clínico individual: exige crítica à materialidade que a sustenta. Mais do que desacelerar, é preciso criar espaços de tempo humano, onde a atenção não seja mercadoria e a identidade não dependa exclusivamente da performance.
Referências
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BAUMAN, Z. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
CIORAN, E. Nos cumes do desespero. São Paulo: Rocco, 2011.
DALGALARRONDO, P. Religião, psicopatologia e saúde mental. Porto Alegre: Artmed, 2008.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
HAN, B.-C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
KIERKEGAARD, S. O conceito de angústia. São Paulo: Unesp, 2010.
MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
ROUDINESCO, É. O eu soberano. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.
Saiba quais são os riscos para o cérebro de assistir vídeos acelerados. Metrópoles, 2025. Disponível em:
https://www.metropoles.com/saude/riscos-cerebro-videos-acelerados
Ansiedade e depressão podem ser diagnosticados de formas diferentes. Metrópoles, 2025. Disponível em:
https://www.metropoles.com/saude/ansiedade-depressao-diagnosticados-diferente
Nota do autor
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador independente e criador do projeto Mais Perto da Ignorância. Articula psicanálise, filosofia e sociologia para questionar narrativas hegemônicas sobre a vida contemporânea, produzindo textos acadêmicos e multimídia.
Canais
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Palavras-chave:
ansiedade, performatividade digital, capitalismo de vigilância, narcisismo, materialidade, saúde mental, liquidez, finitude.
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