Escolixo: quando o Brasil ensina a não aprender
Fonte:
https://www.agazeta.com.br/educares/escolixo-termo-ganha-forca-nas-redes-sociais-e-acende-sinais-de-alerta-0825
O neologismo “escolixo” não nasceu para a academia — e talvez seja por isso que tenha se espalhado tão rápido. É tosco, imediato, memético. Uma palavra de bolso, perfeita para as timelines, carregada de uma crítica que não se pretende sofisticada: a escola é lixo. Mas o que poderia ser lido como mera irreverência adolescente se revela, no fundo, como sintoma de um paradoxo estrutural brasileiro: desvaloriza-se uma instituição que nunca foi plenamente valorizada, enquanto se sacraliza um ambiente — as redes sociais — que jamais teve compromisso algum com a formação crítica.
O Brasil demorou para ter escola pública, universal e gratuita. A primeira lei que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino primário data do final do século XIX, mas foi pouco ou nada cumprida. Até meados do século XX, a maioria dos brasileiros estava fora da sala de aula. Apenas com a Constituição de 1988 a educação foi proclamada como direito universal, e mesmo assim, a universalização efetiva ainda é incompleta. E o dado que escancara a ferida: segundo o INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional, 2023), cerca de 27% dos adultos no país são analfabetos funcionais. Em outras palavras: sabem decodificar letras, mas não interpretam, não elaboram, não transformam informação em pensamento.
Diante disso, falar em “alfabetização digital” como se fosse a etapa seguinte do progresso soa quase cínico. Como alfabetizar digitalmente uma população que ainda não foi alfabetizada criticamente no plano básico? E não é só uma questão de acesso — embora ele já seja desigual —, mas de proveito: que tipo de uso se faz da tecnologia? No caso das crianças e adolescentes protagonistas do discurso “escolixo”, o uso é quase sempre orientado para a visibilidade, monetização e performance — não para o conhecimento. E essa escolha não é aleatória: ela espelha a própria lógica da mídia e da economia no Brasil.
Historicamente, a discursividade midiática nacional nunca foi orientada para o desejo, mas para a demanda. Desde os tempos do rádio até o feed infinito do TikTok, a mensagem central é: “o que você precisa fazer para ter”. Ter o diploma, ter o emprego, ter o corpo ideal, ter o carro, ter os seguidores. A educação, nesse contexto, é vendida como meio de produção de capital — e quando esse capital parece mais acessível via algoritmo do que via diploma, a escola perde o jogo antes de começar.
É aqui que Freud entra: para ele, o desejo é estruturante da subjetividade, e a civilização se constrói a partir da renúncia pulsional. Mas no nosso cenário, essa renúncia foi sequestrada e substituída pela monetização pulsional. Não se renuncia ao gozo para construir saber; apenas se redireciona o gozo para atividades que gerem receita, curtidas e contratos. É o que Byung-Chul Han chama de “sociedade do desempenho”: o sujeito acredita estar perseguindo seus próprios sonhos, mas está apenas obedecendo ao imperativo da produtividade. O “quero” vira “preciso”, e o “preciso” já vem pronto, embalado por campanhas de marketing.
A pesquisa TIC Kids Online Brasil (2024) expõe a dimensão do fenômeno: 83% das crianças e adolescentes brasileiros com acesso à internet têm perfil próprio em redes sociais — muitas vezes, em plataformas que oficialmente não permitem usuários com menos de 13 anos. Isso significa que uma fatia imensa dessa geração está sendo educada — ou melhor, condicionada — por ambientes cujo objetivo não é formar cidadãos, mas reter usuários. Zuboff diria que estamos diante de um caso clássico de capitalismo de vigilância: as plataformas não apenas observam comportamentos, mas moldam as condutas mais lucrativas para elas.
E quando uma influenciadora de 17 anos declara que abandonou a escola e que “não posso nem chamar de escolixo”, ela não está apenas expressando rebeldia juvenil. Ela está performando um script de deslegitimação da educação que serve aos interesses do mercado digital: deslocar o eixo da formação para a monetização imediata. É o triunfo da obsolescência programada aplicada às instituições de saber, como lembraria Bauman: o lento, o reflexivo, o estável tornam-se inúteis num mundo que exige atualização constante.
O mais inquietante é que a escola brasileira nunca chegou a cumprir integralmente seu papel emancipador para as massas. Sempre houve um fosso entre acesso formal e apropriação real do conhecimento. André Green falaria aqui da “morte do objeto simbólico”: a perda do lugar da escola como transmissora de cultura e sua substituição por uma sucessão de objetos digitais efêmeros, excitantes, mas incapazes de estruturar pensamento. É como se a instituição, fragilizada, fosse agora varrida pela avalanche do algoritmo — não porque perdeu a disputa, mas porque nunca lhe deram as ferramentas para competir.
Enquanto isso, o discurso público insiste em soluções que soam quase como ironia: “educar para o uso crítico da tecnologia”, “desenvolver alfabetização midiática”. Mas como desenvolver pensamento crítico sem uma base sólida de letramento? Como ensinar a desconfiar de fontes se o aluno nunca aprendeu a articular uma argumentação a partir de um texto escrito? É aqui que o paradoxo se fecha: estamos pedindo à escola que resolva um problema que ela nunca foi autorizada a resolver.
E assim, o “escolixo” vira mais do que um termo de moda. É sintoma e diagnóstico: de uma educação historicamente tardia, estruturalmente desigual e funcionalmente utilitarista; de uma mídia que sempre vinculou saber a lucro; de um mercado digital que não precisa de pensadores, mas de produtores compulsivos de conteúdo e consumidores igualmente compulsivos. No limite, é o epitáfio de um projeto inacabado de formação pública que está sendo substituído, sem resistência, pelo adestramento privado da atenção.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2010.
GREEN, André. O discurso vivo: a concepção psicanalítica do afeto. Rio de Janeiro: Imago, 1999.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
INAF – Indicador de Alfabetismo Funcional. Relatório 2023. Ação Educativa/Instituto Paulo Montenegro.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2017.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
Nota sobre o autor
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo e idealizador do projeto Mais Perto da Ignorância, dedicado a investigações críticas sobre as patologias da vida contemporânea e a interseção entre tecnologia, subjetividade e poder.
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Palavras-chave:
escolixo, evasão escolar, alfabetização digital, analfabetismo funcional, infância digital, influência mirim, desejo e demanda, capitalismo de vigilância, Freud, Bauman, Han, educação no Brasil, redes sociais, Mais Perto da Ignorância
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