Entre o delírio químico e o mercado da consciência
Fonte original:
https://theconversation.com/alem-do-cerebro-como-psicodelicos-e-organoides-estao-redefinindo-a-neurociencia-262584
O texto da The Conversation celebra, com o entusiasmo habitual da ciência em modo TED Talk, a convergência entre psicodélicos e organoides cerebrais como se estivéssemos diante da nova fronteira libertadora da neurociência. A promessa é tentadora: entender e talvez “reparar” a mente humana pela manipulação de estados de consciência e pela miniaturização do cérebro em laboratório. É o tipo de narrativa que se encaixa no imaginário contemporâneo: otimista, sedutora, com o verniz científico suficiente para neutralizar a dúvida.
Mas o que não é dito — e é aqui que começa o incômodo — é que essa euforia ocorre num momento histórico em que a própria experiência subjetiva está colonizada por métricas, produtividade e vigilância digital. Não estamos explorando o “mistério” da mente: estamos produzindo mais um objeto de mercado. Como diria Byung-Chul Han, o sujeito não é mais explorado por forças externas apenas; ele se autoexplora em nome da otimização de si. Nesse cenário, psicodélicos e organoides podem muito bem se tornar mais um dispositivo de performance emocional.
Do Woodstock ao Vale do Silício: o reaproveitamento da contracultura
Nos anos 1960 e 70, o uso de psicodélicos foi símbolo de ruptura. LSD, mescalina e psilocibina eram associados à contracultura, à recusa dos valores capitalistas e à crítica ao imperialismo cultural. Eram drogas ilegais, usadas em contextos de experimentação artística, espiritual e política. Timothy Leary — com seu “turn on, tune in, drop out” — não pregava produtividade, mas fuga do sistema.
O que vemos hoje é o movimento inverso. O LSD e a psilocibina voltam à cena, mas agora em frascos esterilizados, respaldados por protocolos clínicos e, principalmente, com foco no aumento da performance. Startups do Vale do Silício promovem “microdosing” para ampliar foco e criatividade, não para questionar o status quo. A utopia psicodélica foi reembalada como serviço corporativo.
Bauman ajuda a entender essa inversão: na modernidade líquida, aquilo que um dia foi oposição ao sistema é rapidamente absorvido como produto. A transgressão deixa de ameaçar e passa a vender. A “viagem” deixa de ser um mergulho no desconhecido e se transforma em ferramenta de alinhamento produtivo.
O cérebro como startup
O desenvolvimento de organoides cerebrais traz uma camada extra de mercantilização: não apenas o uso da substância, mas a própria arquitetura neural se torna matéria-prima para pesquisa e patente. Se na era industrial explorávamos carvão e petróleo, na era do capitalismo de vigilância exploramos dados — e agora, redes neurais cultivadas em laboratório.
Zuboff chamaria isso de “excedente comportamental”: todo fragmento de informação — inclusive sobre como nossas sinapses reagem a psicodélicos — pode ser capturado, modelado e vendido. Isso desloca o debate ético do “devemos usar drogas para tratar depressão?” para “quem controla e lucra com os mapas cerebrais produzidos nesse processo?”.
O mal-estar permanece
Freud lembraria que o sofrimento não é eliminável. O que muda são as formas de gestão desse mal-estar. Hoje, substituímos o confessionário e o divã por aplicativos de humor, protocolos de microdosagem e organoides que prometem entender “o que nos falta”. Mas a falta permanece. Como em O mal-estar na civilização, a tensão entre pulsões e repressão não desaparece com inovação tecnológica; apenas se desloca para novos dispositivos de controle.
Cioran, irônico, diria que inventar um antidepressivo perfeito seria um desastre: sem dor, perderíamos o impulso de questionar. A anestesia emocional talvez seja mais perigosa do que a própria depressão, pois nos adapta perfeitamente a uma ordem social que não merece nossa adaptação.
Da promessa de expansão ao ajuste fino
O ponto cego do discurso científico atual é a ausência de dimensão política. A década de 60 usava psicodélicos como experimentação de mundos possíveis; a de 2020 usa como ajuste químico para um mundo que já se decidiu. É como trocar a cartografia da imaginação pela engenharia da conformidade.
No fundo, não é sobre o cérebro. É sobre a manutenção de uma ordem que precisa que o sujeito esteja suficientemente funcional para consumir e se autopromover, mas suficientemente angustiado para continuar comprando a promessa de alívio. Os psicodélicos e organoides não ameaçam essa lógica; ao contrário, podem ser seu próximo motor de crescimento.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Rocco, 1991.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Porto Alegre: L&PM, 2010.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
Nota sobre o autor
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador do projeto “Mais Perto da Ignorância”. Argumenta na angústia como liberdade.
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Palavras-chave
psicodélicos, organoides, neurociência, contracultura, capitalismo de vigilância, mal-estar, subjetividade, performance, medicalização, mercado da consciência, microdosagem, Vale do Silício, mercantilização da mente
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