Beijo comprado, silêncio vendido
Fonte original: https://g1.globo.com/pop-arte/diversidade/noticia/2025/08/07/o-que-e-capacitismo-entenda-debate-nas-redes-apos-nattan-pagar-r-1-mil-para-homem-beijar-mulher-com-nanismo.ghtml
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Não é preciso muito esforço para perceber que o espetáculo contemporâneo tem uma fome insaciável por transformar tudo em moeda — até mesmo aquilo que supostamente denuncia. O caso recente do cantor Nattan, que pagou mil reais para um homem beijar uma mulher com nanismo, foi imediatamente capturado pelas redes sociais, não como tragédia, mas como matéria-prima para a coreografia previsível da indignação digital.
O gesto, já em si constrangedor, não foi isolado: é parte de um ritual social que Byung-Chul Han chamaria de “pornografia da transparência”, na qual o íntimo é exposto para produzir comoção, compartilhamentos e, claro, engajamento. A ação, que poderia ser lida como violência simbólica — e é —, tornou-se apenas mais um frame em alta rotação no feed, misturando-se à torrente de vídeos de dança, receitas rápidas e frases motivacionais.
No diagnóstico de Zygmunt Bauman, vivemos numa modernidade líquida onde relações e valores escorrem pelos dedos; aqui, a moralidade também se liquefaz. O problema não é só o ato em si, mas a lógica que o acolhe: o beijo não é beijo, é performance; a mulher não é pessoa, é personagem; o dinheiro não é pagamento, é lubrificante narrativo.
Se Freud, em O Mal-estar na Civilização, via na repressão um mecanismo de organização social, hoje nos deparamos com seu oposto: a liberação indiscriminada da pulsão — mas sempre mediada pelo capital. O que não é exibido não existe. O que não viraliza, não importa. O suposto arrependimento, as notas de esclarecimento e as hashtags corretivas já estão precificadas no roteiro da crise.
O mais incômodo, porém, é notar que a crítica ao ato de Nattan não escapa ao mesmo circuito de mercantilização que o produziu. Shoshana Zuboff, em A Era do Capitalismo de Vigilância, descreve como a economia digital transforma comportamentos em dados e dados em lucro. A indignação, portanto, é também um recurso explorável. Denunciar o capacitismo neste formato é participar — mesmo involuntariamente — da engrenagem que o mantém.
Aqui, o capacitismo não é apenas a discriminação direta contra pessoas com deficiência. É também a invisibilização de suas vozes reais, substituídas pelo coro genérico da opinião pública que, entre um story e outro, terceiriza a dor alheia para se sentir moralmente atualizado. André Green, ao falar do “narcisismo de vida e de morte”, lembra que o olhar que se volta para o outro, mas apenas para confirmar a própria imagem, é uma forma refinada de negação da alteridade.
A pergunta que sobra não é “por que ele fez isso?”, mas “por que nós assistimos até o fim?”. Porque há prazer — não declarado — em testemunhar o deslize do outro. Cioran já dizia que “o próximo só é suportável à distância”; no feed, essa distância é confortável o suficiente para que possamos consumir o outro como conteúdo, sem a obrigação de lidar com o peso ético real de suas dores.
O presente histórico amplifica esse cinismo. Enquanto discutimos o beijo, as condições materiais que sustentam o preconceito permanecem intocadas: falta de acessibilidade, desigualdade de oportunidades, fetichização de corpos fora do padrão. O caso Nattan é apenas um sintoma visível de uma lógica que atravessa a publicidade, o entretenimento e até a política: a exploração estética da vulnerabilidade.
Marx, em O Capital, talvez visse aqui um exemplo didático da mercadoria: algo que, ao ser exibido, oculta as relações sociais que o tornaram possível. O beijo é o produto, mas a mercadoria real é a atenção que ele compra e vende. O capital simbólico e o capital financeiro se alimentam mutuamente — e nós, espectadores, somos ao mesmo tempo clientes e matéria-prima.
O que não se diz na matéria é que a repercussão também é parte do espetáculo. A mídia, mesmo quando adota tom crítico, sabe que o escândalo movimenta cliques. A cultura da “lacração” e do “exposed” cumpre um papel duplo: aparenta corrigir injustiças, mas, no processo, mantém acesa a fogueira onde se queima a dignidade alheia.
Talvez o mais honesto seja admitir que não existe “fora” dessa lógica. Podemos recusar o ato, condenar o gesto e até organizar campanhas de conscientização. Mas enquanto as redes sociais forem o palco central da vida pública, qualquer denúncia estará sujeita ao mesmo metabolismo de likes, views e monetização.
O beijo foi comprado, mas o silêncio — aquele silêncio profundo que permitiria ouvir as vozes das pessoas com nanismo falando por si mesmas — segue sendo vendido. E sempre haverá quem pague bem por ele.
Referências:
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988.
HAN, B.-C. A sociedade da transparência.
Petrópolis: Vozes, 2017.
MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2017.
ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
Nota sobre o autor
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador do projeto “Mais Perto da Ignorância”. Argumenta na angústia como liberdade.
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capacitismo, espetáculo, indignação, capitalismo de vigilância, narcisismo, modernidade líquida, violência simbólica, redes sociais, mercadoria, atenção, visibilidade, alteridade, engajamento, cultura digital, dignidade
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