O fetiche do saber falso: quem lucra com a fraude acadêmica?
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A produção industrial de papers científicos falsos não é um erro técnico. É um sintoma — e como todo sintoma, revela mais do que esconde: revela um sistema de prestígio acadêmico parasitado por métricas, um capitalismo cognitivo que substituiu o pensamento por produtividade e que, como ironizou Freud, parece ter trocado o inconsciente por um DOI. O que está em jogo aqui não é apenas a fraude. É a metamorfose do saber em performance, da verdade em algoritmo, do pensamento em moeda de troca.
Segundo a matéria da Folha (07/08/2025), universidades vêm enfrentando um aumento exponencial de artigos gerados por empresas de “fábrica de papers”, com textos falsificados, coautorias vendidas e citações inventadas. A denúncia não é nova, mas o escândalo está normalizado — quase como um efeito colateral aceitável num ambiente onde o valor do conhecimento não está mais no conteúdo, mas no número de acessos, indexações e métricas performativas.
Byung-Chul Han já nos alertava: a positividade do desempenho esvaziou o espaço do pensamento. A verdade não precisa mais ser demonstrada. Basta que seja publicada, replicada, ranqueada. André Green poderia chamar isso de narcisismo epistêmico: o saber virou um espelho onde os sujeitos buscam apenas validar sua imagem de produtividade, não de pensamento. E Bauman completaria: estamos diante de um “conhecimento líquido”, que se molda ao interesse de editais, agências de fomento e plataformas de ranqueamento, e não à busca da verdade.
A crítica aqui não é moral. É estrutural. O sistema universitário, especialmente nas ciências humanas e sociais, está precarizado por dentro — e isso não é efeito de um colapso, mas de um projeto. A proliferação de papers-fantasma é o efeito lógico de um modelo que premia a quantidade sobre a qualidade, a produtividade sobre a profundidade, o currículo sobre o conteúdo. É a lógica da fábrica aplicada ao espírito.
Marx talvez sorrisse: a reificação chegou ao pensamento. O paper virou mercadoria. O autor, um avatar. A verdade, um simulacro. A “produção científica” não se dá mais para transformar o mundo, como queria o velho Karl, mas para manter o pesquisador no sistema — como queria o novo capital. Shoshana Zuboff diria: estamos num capitalismo de vigilância cognitiva, onde até os dados de citação viraram produto.
Mas o mais trágico é que não se trata de má-fé individual. Trata-se de um ambiente inteiro que incentiva o delírio métrico. O pesquisador que se recusa a entrar nesse jogo performático torna-se invisível, apagado, descredibilizado. Não é só a fraude que prolifera, mas também a exclusão de quem não finge saber. A subjetividade pensante dá lugar ao currículo gerenciável. O “eu-pensante” é substituído pelo “eu-indexável”.
A dúvida, que deveria ser o motor do pensamento, virou um estorvo. A angústia epistêmica — própria do verdadeiro pesquisador — foi substituída pelo marketing acadêmico. E como ironizaria Cioran, não há nada mais deprimente do que uma universidade onde todos sabem exatamente o que querem publicar.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
FOLHA DE S. PAULO. Produção de artigos científicos falsos está aumentando. Ciência. 07 ago. 2025. Disponível em: https://share.google/Pl7vLi8FSUwupUeqb. Acesso em: 07 ago. 2025.
MARX, Karl. O capital. São Paulo: Boitempo, 2011.
CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Rocco, 2006.
Nota sobre o autor:
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador independente e autor do projeto “Mais Perto da Ignorância”, que analisa o mal-estar contemporâneo através de uma lente crítica, psicanalítica e niilista.
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fraude acadêmica, produtividade tóxica, narcisismo epistêmico, fábrica de papers, conhecimento líquido, capitalismo de vigilância, performance, currículo, angústia, métrica
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