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O delírio do código aberto: quem pensa quando a máquina finge?

O delírio do código aberto: quem pensa quando a máquina finge?


Fonte original:

https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2025/08/05/openai-lanca-modelos-abertos-de-inteligencia-artificial-capazes-de-realizar-raciocinio-complexo.ghtml
#maispertodaignorancia

Texto crítico:

A OpenAI acaba de abrir o cofre. Modelos “abertos” de inteligência artificial agora são capazes — diz o marketing — de realizar raciocínio complexo. A promessa não é nova: maquinar a razão como se ela pudesse ser exportada, empacotada e entregue em API. O inédito é o cinismo com que se simula transparência para o que continua sendo, estruturalmente, uma caixa-preta — só que agora open source.

De onde vem essa ânsia por “raciocinar” maquinalmente? Seria ingenuidade supor que ela nasce do desejo humano de compreender mais. Ao contrário, como nos alerta Bauman em Em busca da política, vivemos a liquefação das decisões e a externalização das escolhas. A máquina não pensa por nós. Ela pensa em lugar de nós. E isso não é um avanço: é uma rendição.

O discurso do “open” escamoteia a nova forma de vigilância cognitiva. Como lembra Zuboff (A era do capitalismo de vigilância), a lógica algorítmica se expande sob o pretexto de oferecer mais controle ao usuário, quando, na verdade, o captura em fluxos de previsibilidade e dependência. O modelo é aberto, mas o uso que se faz dele — a quem serve, com que vieses, com que finalidades — permanece hermético.

André Green, em Narcisismo de vida, narcisismo de morte, descreve o sujeito que se esvazia na presença do outro como espelho. Nesse caso, o “outro” é uma máquina que imita afetos, textos, decisões — até dúvidas. Mas duvidar, como exercício ético e existencial, exige angústia. E não há angústia no código. Há apenas simulação.

Freud, em O mal-estar na civilização, já apontava que o progresso técnico não reduz o sofrimento humano — apenas o desloca. Enquanto ampliamos a performance computacional, atrofiamos o senso crítico. Porque pensar, no sentido freudiano, é também recusar. E o discurso da IA não admite recusas: ele exige adesão, plug-in, download, API key. A subjetividade é convertida em interface.

Zygmunt Bauman observou que, na modernidade líquida, o excesso de opções paralisa mais do que empodera. Vivemos hoje o paradoxo da hiperdisponibilidade com senso crítico deficitário. Ao mesmo tempo em que o GPT se torna “open”, a subjetividade se torna closed. Encerrada em bolhas de opinião, endossada por algoritmos que apenas reafirmam o já sabido. A máquina “raciocina” não para nos libertar, mas para consolidar o império do dado. A máquina não duvida.

E quando não há dúvida, não há política. Como aponta Bauman, sem espaço público de debate, resta-nos o consumo de certezas fabricadas. Resta-nos usar raciocínios prontos — como quem encomenda uma resposta por delivery. Pensar virou serviço. Angustiar-se virou bug.

Mais inquietante, porém, é que gostamos disso. A ilusão de ter uma inteligência substituta que não erra, não sofre, não hesita — e que responde rápido — alimenta uma forma de narcisismo defensivo. Segundo André Green, esse narcisismo é estruturado pela recusa ao vazio. E é justamente o vazio — o silêncio, a dúvida, o lapso — que inaugura a possibilidade do pensamento ético. Ao delegarmos o raciocínio ao modelo, evitamos o espelho. E no fundo, não queremos pensar. Queremos terceirizar a dor de pensar.

A abertura da OpenAI, portanto, não é emancipatória. É anestésica. Eficiente como uma anestesia geral: você não sente, não pensa, não age. O sujeito se dissolve na performance da máquina. O sujeito se torna redundante.

No capitalismo de dados, a promessa de inteligência aberta é, na verdade, o fechamento da consciência crítica. E isso, como dizia Cioran, talvez seja o único progresso autêntico: regredir de volta ao silêncio — mas agora, mediado por um assistente virtual.


Referências :

BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras completas, vol. 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1993.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Rocco, 1998.


Nota sobre o autor:

José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador do projeto “Mais Perto da Ignorância”. Argumenta na angústia como liberdade.


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Palavras-chave:

algoritmo, vigilância, subjetividade, narcisismo, código aberto, crítica, simulação, inteligência artificial, anestesia, angústia, automatização, dúvida, performance, pensamento, silenciamento



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