O CL1 não pensa — mas já nos imita
Fonte original:
https://www.tempo.com/noticias/ciencia/cl1-e-o-primeiro-computador-com-neuronios-humanos-cultivados-em-laboratorio-esta-a-venda-e-pode-superar-a-ia.html
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Texto crítico:
A manchete já carrega a promessa narcísica do nosso tempo: “superar a IA”. Mas o CL1, primeiro computador com neurônios humanos cultivados em laboratório, não pretende raciocinar — apenas aprender. Trata-se da biotecnologização da cognição, onde o pensar é reduzido a uma repetição adaptativa, e a singularidade humana, mais uma vez, terceirizada ao mercado. Nada de novo sob o sol artificial dos laboratórios: o algoritmo virou carne, mas segue obedecendo.
Byung-Chul Han já denunciava o terror do igual: vivemos uma era onde o outro — radical, incômodo, imprevisível — é expulso, e em seu lugar reina o mesmo. O CL1 não representa um salto ontológico, mas sim um loop hipertecnológico da performance. Ele não produz pensamento, apenas resposta. Um rebanho de neurônios domesticado para o culto da previsibilidade.
Zygmunt Bauman, em suas cartas do mundo líquido, alertava para a tragédia de um tempo onde a informação abunda, mas o sentido escasseia. O CL1 é filho legítimo desse colapso: um dispositivo que aprende, mas não compreende; que responde, mas não interpela. É o herdeiro bastardo de uma civilização que trocou a sabedoria pelo machine learning, e a dúvida pelo deep fake.
Já André Green, ao tratar do narcisismo de vida e de morte, expõe a ferida aberta dessa empreitada: o CL1 opera no campo do narcisismo instrumental. É projetado para nos imitar, não para nos contradizer. Aqui, a subjetividade não é desafiada, mas confirmada, retroalimentada, adormecida. A inteligência biocomputacional, em vez de inaugurar o outro, repete o idêntico — de forma cada vez mais eficiente, mais rentável, mais obediente.
Essa não é uma revolução cognitiva, mas um rebranding da nossa obsolescência. O discurso que vende o CL1 como “avanço” omite a ética de um mundo onde neurônios humanos são cultivados como placas de circuito. A carne virou hardware — e ninguém parece constrangido.
Em um tempo onde o corpo já é moeda, e a consciência, algoritmo, não é surpreendente que neurônios em laboratório sejam vendidos como inovação. Surpreendente seria se ainda nos chocássemos.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
HAN, Byung-Chul. A expulsão do outro: sociedade, percepção e comunicação hoje. Petrópolis: Vozes, 2022.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras completas, v. 17. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Nota sobre o autor:
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador independente e autor do projeto “Mais Perto da Ignorância”, onde interroga os paradoxos da técnica, da subjetividade e do mercado.
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neurônios artificiais, biotecnologia, subjetividade, vigilância, narcisismo, algoritmo, repetição, identidade, mercado, controle
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