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Automatize tudo, inclusive o seu próprio espanto. Depois me diga se sobrou sujeito para gozar desse milagre


No marketing das buzzwords, a “transformação digital” já soa como música de elevador; o hit do momento é o mantra AI-first. Empresas mundo afora começam a projetar produtos, processos e até culturas tendo a IA como engrenagem central — e não mais como plug-in tardio. A promessa: ganhos exponenciais de produtividade. A realidade brasileira: infraestrutura frágil, déficit de meio milhão de profissionais de TI e uma elite corporativa que ainda confunde chatbot com estratégia. Entre o hype e a precariedade, a mensagem é clara: ou se coloca inteligência no centro ou ficamos no anexo “em desenvolvimento” das estatísticas globais.

1. Da transformação digital ao dogma AI-first

A virada conceitual já aparece em relatórios de mercado e na imprensa internacional. Brian Solis, na Forbes, destaca que o discurso de “digitalização” foi engolido por uma exigência de business transformation guiada por IA. A * CIO* resume a transição como troca de uma “transformação linear” por uma “transformação exponencial” habilitada por modelos generativos. O Hype Cycle da Gartner posiciona GenAI no pico de expectativas, mas já alerta que orquestração de dados virou pré-condição. Na prática, a adoção global cresce: o último State of AI da McKinsey mostra organizações usando IA, em média, em três funções de negócio.

2. Diagnóstico Brasil: potencial vs. gargalos

O artigo do Terra sintetiza bem o paradoxo: 95 % dos executivos brasileiros consideram IA essencial, mas só 14 % atingem maturidade. A pesquisa SAS pôs o país em 11.º no ranking de GenAI, atrás de vizinhos latino-americanos e bem distante dos líderes asiáticos. Estudo Meta-FDC confirma a lacuna: entusiasmo alto, roadmap nebuloso. No front regulatório, 2025 é ano-limite para avanços em LGPD 2.0, cloud soberana e marco de IA no Congresso, ressalta análise da Covington. Soma-se o desafio energético e de data centers: câmbio volátil, impostos pesados e gargalo logístico para hardware especializado.

2.1 Mão de obra: a ferida que sangra

Brasscom calcula déficit de 530 mil profissionais de TI até o fim de 2025. Pesquisas recentes indicam que a falta de talentos é o obstáculo n.º 1 para 53 % das empresas nacionais. Reportagem da TI Inside fala em meio milhão de vagas abertas já neste semestre. Enquanto isso, salários de especialistas em IA sobem 11 % ao ano, alimentando fuga de cérebros para multinacionais remotas.

3. Infraestrutura, dados e governança

IA-first pede pipelines robustos e políticas sérias de governança. O Gartner aponta que 80 % dos projetos GenAI fracassam por dados pobres. No Brasil, muitas empresas ainda mantêm ERPs on-premise pré-2010; migrar para cloud soberana é passo obrigatório, mas envolve CAPEX e dores de compliance. Sem isso, é impossível sustentar foundation models ou fluxos de inferência em tempo real; a tese AI-first vira “IA-farsa”.

4. Estratégia de negócio e convergência tecnológica

AI-first não é app mimoso de chatbot — é reimaginar cadeia de valor: pricing dinâmico, manutenção preditiva, design generativo. A confluência com 5G + IoT prepara terreno para cidades, indústrias e agronegócios hiper-sensorizados. Empresas que integrarem esses vetores cedo cristalizarão vantagens de dados difíceis de replicar pelos retardatários.

5. Reflexão crítica: o espelho negro da eficiência

Byung-Chul Han alertaria: quanto mais smart, mais invisível o regime disciplinar. Aqui, o fetiche AI-first embala o sonho de produtividade infinita — mas escamoteia a precarização dos saberes e a expansão do “sujeito-projeto” permanentemente otimizado. Bauman chamaria de modernidade líquida™; eu diria modernidade sobre-treinada, onde modelos estatísticos substituem o conflito humano pela inferência probabilística. Suprimida a tensão, resta o que? Engajamento KPI-izado, dopamina de OKRs e um deserto de significados.

> "Automatize tudo, inclusive o seu próprio espanto. Depois me diga se sobrou sujeito para gozar desse milagre."

#maispertodaignorancia



6. Recomendações (com uma pitada de ironia)

1. Mapeie tensões, não só processos – onde dói de verdade? Dado ruim automatizado é apenas fiasco em velocidade quântica.


2. Forge alianças edu-industriais – universidades ainda formam gente; aproveite antes que sejam disrupted pelos bots.


3. Data first → IA first – sem metadados e LGPD na veia, GenAI vira gerador de confusão sintética.


4. Governança ética – não terceirize ao regulador; ele chegará tarde, de carona em download de PDF.


Fontes:

Terra, “Adeus à transformação digital: era AI-first”

Forbes, Brian Solis, “GenAI urges a shift…”

CIO.com, “Goodbye digital transformation, hello AI-first”

Gartner, “Hype Cycle for AI 2024”

McKinsey, “The State of AI 2024”

SAS, “Global GenAI research study”

Meta & Fundação Dom Cabral, DXi Ano 2

Covington, “Brazil’s digital policy 2025”

Chambers, “AI 2025 – Brazil”

LinkedIn, “Convergence of 5G, AI and IoT”

TI Inside, déficit de profissionais TI

Neofeed, falta de profissionais qualificados em IA

Forbes BR, “Escassez de talentos… ”

TI Inside, “Demanda por profissionais especializados cresce 21%”



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