Conclusão - Part - (2 final) - Anatomia da dor performance: Freud, Furedi, Han e Cioran na era do sujeito exausto
#maispertodaignorancia
Ao observar como a dor migrou do recanto íntimo para o palco digital, percebo que hoje não basta sofrer: é preciso enquadrar, legendar e monetizar cada fissura da alma. Neste ensaio, falo em primeira pessoa porque também me vejo implicado nessa engrenagem que converte angústia em capital simbólico e clickável. Sigo quatro vozes — Freud, Furedi, Han e Cioran — para mapear a metamorfose de um mal‑estar que, longe de silenciar‑se, aprendeu a performar.
Começo por Freud, que nos lembra do preço da civilização: reprimo pulsões para coexistir e, como recibo, herdo culpa e sintomas. Contudo, a dinâmica contemporânea trocou o divã pelo feed; a confissão terapêutica substituiu o silêncio elaborativo. Meu sintoma agora vem com filtro, estatística de engajamento e, por vezes, link de afiliado. Recalque tornou‑se pop‑up, superego assumiu forma algorítmica e a dor passou a ser notificação permanente.
É aqui que a leitura de Frank Furedi se torna indispensável. Ele descreve uma cultura terapêutica onde vulnerabilidade não é fase, mas identidade. Reconheço no meu entorno — e em mim — o fascínio por diagnósticos que rendem curtidas e pertencimento. A insegurança vende; gurus prometem resiliência instantânea; e eu, espectador e participante, reflito: quantas vezes transformei meu próprio mal‑estar em narrativa palatável para não perder o fio de relevância social?
Byung‑Chul Han entra nesta conversa mostrando o reverso da moeda: a positividade tóxica que me exige sorrir e produzir mesmo quando implodo de cansaço. Se Furedi mapeia o fetiche da fraqueza, Han denuncia o culto à performance. Eu oscilo entre expor a ferida e exibir produtividade — duas faces da mesma servidão que mede valor em métricas e não em experiência vivida. Nessa corrida, perco o eros criativo e substituo o silêncio fértil por planilhas de autocuidado.
Então convoco Emil Cioran, cuja lucidez amarga se recusa a anestesias. Ao abraçar o niilismo, ele me lembra que a dor, despida de espetáculo, pode ser clarão de verdade. Sua recusa ao conforto me chacoalha: talvez eu precise menos de curadoria afetiva e mais de coragem para encarar o vazio sem legendas.
No entrelaçamento dessas vozes, reconheço o surgimento do sujeito exausto: alguém que administra sintomas como ativos digitais, teme o risco e foge do silêncio. Eu mesmo, enquanto escrevo, luto para que estas linhas não virem mais um produto de dor higienizada. Reabilitar a angústia significa devolver‑lhe o direito ao mistério, reinserir o risco na experiência e calar, por instantes, o algoritmo que exige transparência total.
Ignorar certas notificações é escolher um tipo de ignorância criativa: não a que cega, mas a que protege o intervalo onde desejo e imaginação podem germinar sem patrocínio. Se a dor virou espetáculo, meu gesto de resistência é devolvê‑la ao carácter de enigma — algo que não se resolve em 280 caracteres nem cabe em stories de vinte e quatro horas.
Referências
Cioran, Emil. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.
Freud, Sigmund. O mal‑estar na civilização. Trad. Paulo César Souza. Rio de Janeiro: Imago, 2010.
Furedi, Frank. Cultura Terapêutica: cultivando a vulnerabilidade em uma era de incerteza (título livre). Londres: Routledge, 2003.
Furedi, Frank. Cultura do Medo: assumir riscos e a moralidade da baixa expectativa (título livre). Londres: Cassell, 1997.
Han, Byung‑Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
Han, Byung‑Chul. A expulsão do outro. Petrópolis: Vozes, 2017.
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