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Sangrando o Silêncio: quando o cuidado se torna anestesia

Sangrando o Silêncio: quando o cuidado se torna anestesia




Sangrando o Silêncio: quando o cuidado se torna anestesia

Não é novidade que os dados sobre saúde mental feminina estão em vermelho — não por serem visíveis, mas porque sangram em silêncio. A ansiedade, a depressão, os transtornos alimentares e o pânico que se multiplicam em corpos femininos não são eventos isolados, mas sintomas de um sistema que continua tratando o sofrimento como falha individual.

O discurso dominante tenta nos convencer que cuidar da saúde mental é fazer yoga, tomar chá de camomila e usar aplicativos de respiração. Enquanto isso, a mulher segue com três jornadas: emocional, produtiva e estética. Ser ansiosa hoje é quase um dress code, desde que não atrapalhe a performance no trabalho ou a foto no Instagram.

Freud já nos alertava, ao escutar as histéricas — mulheres que não podiam falar, então gritavam pelo corpo. Hoje, a histeria foi substituída por diagnósticos bem embalados para o consumo. Segundo Freud, “o paciente tem sempre razão” porque o sintoma fala o que a sociedade não quer ouvir.

Byung-Chul Han, por sua vez, nos lembra que vivemos sob o jugo da positividade, onde até o sofrimento precisa ser otimizado, bem-humorado e transformado em marca pessoal. A mulher deprimida não pode apenas sofrer — ela precisa render conteúdo, viralizar sua superação, usar filtros com frases motivacionais.

Kierkegaard, ao pensar a angústia, dizia que ela é a vertigem da liberdade. Mas que liberdade é essa quando a mulher não pode sequer parar? Quando parar é sinônimo de fracasso e descansar é um luxo? A angústia, nesse cenário, é patologizada — nunca ouvida.

A crise não é individual. Como lembra Neury Botega, no seu estudo sobre a crise suicida, a dor psíquica só se torna insuportável quando não encontra espaço de escuta real. E escutar de verdade é tornar-se vulnerável à dor do outro, o que o mercado não suporta.

É nesse ponto que sangramos o discurso: o sofrimento feminino não é defeito. É denúncia. É recusa em aceitar uma normalidade insustentável. Enquanto os números seguem crescendo, o cuidado se torna mercadoria. E a dor, algoritmo.



Referências:

FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

HAN, Byung-Chul. A expulsão do outro. Petrópolis: Vozes, 2017.

KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2017.

BOTEGA, Neury José. Crise suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed, 2015.


Autor:
José Antônio Lucindo da Silva, CRP 06/172551. Psicólogo clínico, pesquisador independente no Blog “Mais Perto da Ignorância”.
#maispertodaignorancia

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