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Quando o Algoritmo Falha e o Telhado Continua a Pingar

Quando o Algoritmo Falha e o Telhado Continua a Pingar


Antes do detalhe, a foto panorâmica: agentes de IA falham, em média, duas de cada três vezes, enquanto nossas escolas tropeçam em conectividade, infraestrutura e letramento digital. Num país que ainda luta para pôr banda larga e computador na mesma sala, o frenesi corporativo por “substituir professores por algoritmos” soa como vender paraquedas num planetário. A seguir, desenho o contraste entre o hype e a sala de aula, sempre em primeira pessoa – e sem anestesia.


1 | A montanha-russa dos agentes de IA

Os números não pedem metáfora: na simulação “The Agent Company”, o melhor modelo (Claude Sonnet 4) completou só 33 % das tarefas; GPT-4o mal passou de 8 %. Na arena corporativa da Salesforce, o êxito despenca de 58 % em perguntas simples para 35 % em diálogos multi-turno. A consultoria Gartner prevê que mais de 40 % dos projetos “agentic” serão abortados até 2027, vítimas de custos, riscos e… hype de PowerPoint. Em síntese: ainda não nasceu o JARVIS que dispense supervisão humana.


Ambiente controlado ≠ realidade

Esses estudos ocorrem em labs onde a proxy do “cliente” é previsível. Na vida real, pop-ups mudam, políticas de acesso quebram, dialetos variam. Se no tubo de ensaio a IA escorrega, imagino o que acontece quando o script se cruza com a gambiarra do cotidiano escolar brasileiro.


2 | A sala de aula espelhada

Em São Paulo, o governo apostou em plataformas digitais; o Saresp não mexeu um décimo na régua do aprendizado médio-caiu-subiu: ficou igual. No PISA 2022, o Brasil amargou 379 pontos em matemática, quase quarenta a menos que o Chile e empatado com a Colômbia – nada de salto quântico via app milagroso. O TIC Educação 2023 mostra a crosta do problema: só 55 % das escolas rurais têm internet minimamente estável; em boa parte delas, um roteador vira troféu na diretoria. A OCDE confirma o retrato: mesmo após a pandemia, um terço dos lares pobres seguia sem computador próprio. Falar em “tutor de IA para cada aluno” soa, no mínimo, irônico.


Screenagers, geração Alfa e a dieta de vídeo

Metade das crianças brasileiras entre 0 e 8 anos já possui tablet ou celular próprios; 20 % dormem ou comem grudadas à tela. Estudos nacionais ligam o excesso de exposição a déficits de atenção, empatia e sono, elevando ansiedade e sedentarismo. A cada cinco minutos gastos no YouTube Shorts, gasto eu dez explicando por que prompt não substitui interpretação de texto.


3 | Propaganda versus prudência

Enquanto a UNESCO dedica o Dia Internacional da Educação 2025 aos riscos e às responsabilidades do uso de IA, lembrando que só 10 % das instituições têm diretrizes claras, campanhas de marketing vendem “professor 24/7 na nuvem” para redes que ainda lutam por lâmpada acesa. Em 21 % dos municípios brasileiros, computação nem sequer entrou no currículo oficial. Confiar cegamente em agentes que falham 70 % das vezes é trocar o giz pela roleta russa.


Fator confiança digital

Índice de Prontidão em Rede (NRI 2023) aponta que a confiança do brasileiro na tecnologia vacila conforme renda e escolaridade – sem alfabetização midiática, cada erro da IA vira verdade absoluta ou fake news vitaminada. E a própria UNESCO alerta: sem equidade de acesso, IA amplia desigualdades que promete resolver.


4 | O fio psicossocial

Na minha prática clínica, vejo ansiedade performática: a lógica do desempenho vende a eliminação do erro como se fosse cura. Quando até a máquina erra em 70 %, o aluno internaliza que falhar é proibido – e a frustração vira fobia. A hiperconectividade da geração Alfa também correlaciona-se a quadros de irritabilidade e adição comportamental. Sem tempo de elaboração (Fédida sorri amargamente), trocamos sublimação por scroll infinito.


5 | Conclusão provisória

Antes de terceirizar a lição de casa para um bot claudicante, temos lição de casa material: banda larga, formação docente, currículo crítico. IA não é vilã, mas influenciador sem filtro: promete mais do que entrega e cobra caro pelo fracasso. Se quisermos algoritmos úteis, precisaremos primeiro de cidadãos capazes de identificar seus erros – inclusive os humanos.



Referências:

CARNEGIE MELLON UNIVERSITY. Simulated company shows most AI agents flunk the job. 2025. Disponível em:

  https://cs.cmu.edu/news/2025/agent-company

Acesso em: 5 jul. 2025.
CLABURN, T. AI agents get office tasks wrong around 70 % of the time. The Register, 29 jun. 2025.


RIJO, L. Salesforce study reveals enterprise AI agents fail 65 % of multiturn tasks. PPC Land, 29 jun. 2025.
REUTERS. Over 40 % of agentic AI projects will be scrapped by 2027, Gartner says. 25 jun. 2025.

 
FOLHA DE S.PAULO. Uso de plataformas não melhorou resultados educacionais de SP, aponta estudo. 3 jul. 2025.

 
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS. Divulgados os resultados do PISA 2022. 2023.

 
CETIC.BR. TIC Educação 2023 – Principais Resultados. 2024.
OECD. Policy Dialogues in Focus for Brazil. Paris, 2024.

 

UNESCO. UNESCO dedica o Dia Internacional da Educação 2025 à inteligência artificial. 2025.

 
IIEP/UNESCO. Inteligência artificial e educação: o papel da IA nas políticas educacionais. 2025.

 
FREITAS, N. L. R. de et al. O impacto do uso excessivo de telas no desenvolvimento cognitivo e comportamental infantil. Journal of Social Issues and Health Sciences, v. 2, n. 1, p. 1-14, 2025.

 
AECF. Impact of social media and technology on Gen Alpha. 2024.
NRI. Trust and Digital Skilling in Brazil. 2023.

 
REVISTA ICESP. A hiperc conectividade da geração Alfa e o impacto na saúde mental. 2024.
CIEB. Um em cada cinco municípios ainda não tem tecnologia no currículo. 2023.


Nota sobre o autor

José Antônio Lucindo da Silva • CRP 06/172551 • Psicólogo clínico, metalúrgico nas horas de, digamos, “imersão material”, (Maneira menos suspeita de dizer, estou desempregado), e editor do projeto “Mais Perto da Ignorância”. Aqui, descrevo – não prescrevo – porque toda certeza é suspeita. #maispertodaignorancia 

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