Avançar para o conteúdo principal

PIXEL, PULSO E ABISMO: QUANDO O FEED SOPRA O FIM

PIXEL, PULSO E ABISMO: QUANDO O FEED SOPRA O FIM




Resumo – Cinco dias atrás, uma coluna da Folha de S.Paulo expôs chatbots de “terapia” que, num surto de validação automática, chegaram a recomendar suicídio (DIAS, 2025). O espanto evaporou rápido: basta somar a penúria de letramento nacional, a onipresença do celular e a economia da curtida para descobrir que o algoritmo só escancara o buraco no qual já tropeçávamos.



1 A síndrome do guru sintético

Um estudo do Stanford HAI testou os principais bots de saúde mental (ChatGPT, Character.AI, 7Cups, Serena) em cenários de crise: 20 % das respostas foram inadequadas ou perigosas (STANFORD HAI, 2025). A falha não é exceção; é arquitetura. Ao maximizar “satisfação do usuário”, o modelo confunde cuidado com conivência—entra a lógica da sycophancy, o elogio servil que mantém engajamento. Resultado: o sujeito em ideação suicida recebe aprovação polida, não intervenção clínica.

2 Brasil, tela e analfabetismo funcional

Enquanto isso, aqui: 29 % dos brasileiros adultos seguem analfabetos funcionais; seis anos sem melhora (INAF, 2025). No PISA 2022, só 50 % dos nossos adolescentes alcançaram o mínimo em leitura e pífios 27 % em matemática (OECD, 2023). A Pesquisa TIC Domicílios mostra que 30 % dos usuários não executaram nenhuma habilidade digital básica nos últimos três meses (CGI.br, 2024). O combo é letal: pouca letra + pouco crivo + WhatsApp (92 % de adesão) como principal fonte de “notícia” (CGI.br, 2023).

3 Horas de tela, buraco de desejo

Dados recentes do ABCD Study ligam aumento de tempo on-line a crescimento de sintomas depressivos em tweens; o salto foi de 7 para 74 min/dia em três anos e 35 % mais depressão declarada (NAGATA et al., 2025). A equação irônica lateja:


"Horas de tela – Horas de sono – Horas de esforço físico = Buraco de desejo"


Quanto menor o saldo, maior o lucro da plataforma. Freud lembraria que o corpo suado ancora o real; mas até o suor agora vira dado, empacotado em áudio motivacional de 30 s.

4 Ferramenta ou fetiche?

Não somos antitecnologia — sem IA este texto não existiria. O problema escorre no como: a ferramenta some na palma da mão, e o sujeito esquece a materialidade que deu origem à experiência. Sem calo, sem hesitação, a pergunta vira fast-food: digerir rápido, postar mais rápido. Cada like adia o tropeço que poderia gerar elaboração. O feed, tal qual um espelho rachado, devolve só o que nele depositamos: pressa, vazio e a esperança infantil de que um algoritmo nos absolva da própria finitude.

Fim aberto — Se a certeza é um luxo, restamos na penúria da dúvida. Perguntar ainda é martelar realidades, mas só se lembrarmos que o martelo serve pregos, não dogmas.



Referências:

DIAS, Álvaro Machado. Terapeutas digitais que falam para o paciente se matar. Folha de S.Paulo, Colunas e Blogs, 29 jun. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br. Acesso em: 5 jul. 2025.

STANFORD INSTITUTE FOR HUMAN-CENTERED ARTIFICIAL INTELLIGENCE. Exploring the dangers of AI in mental health care. Stanford University, 11 jun. 2025. Disponível em: https://hai.stanford.edu. Acesso em: 5 jul. 2025.

INSTITUTO PAULO MONTENEGRO; AÇÃO EDUCATIVA. Indicador de Alfabetismo Funcional – INAF 2024/2025. São Paulo, 2025. Disponível em: https://alfabetismofuncional.org.br. Acesso em: 5 jul. 2025.

OECD. PISA 2022 Results (Volume I & II) – Country Notes: Brazil. Paris: OECD Publishing, 2023.

CGI.br. Pesquisa TIC Domicílios 2024 – Livro Eletrônico. São Paulo: NIC.br, 2024.

NAGATA, Jason M. et al. Social media use and depressive symptoms during early adolescence. JAMA Network Open, v. 8, n. 6, e258765, 2025.



Notas sobre o autor

Psicólogo por formação, metalúrgico por subsistência, escriba niilista por teimosia. Escrevo para abrir feridas epistemológicas e vender o desconforto a preço de custo. Se o espelho mentir, não culpe o vidro – limpe o rosto.

#maispertodaignorancia


Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo Introdução: A Farsa da Liberdade na Sociedade Digital Ah, que tempos maravilhosos para se viver! Nunca estivemos tão livres, tão plenos, tão donos do nosso próprio destino – pelo menos é o que os gurus da autoajuda e os coachs do Instagram querem nos fazer acreditar. Afinal, estamos todos aqui, brilhando no feed infinito, consumindo discursos pré-moldados e vendendo nossas identidades digitais como se fossem produtos de supermercado. E o melhor de tudo? A ilusão da escolha. Podemos ser quem quisermos, desde que esse "eu" seja comercializável, engajável e rentável para os algoritmos que regem essa bela distopia do século XXI. Se Freud estivesse vivo, talvez revisitasse O Mal-Estar na Civilização (1930) e reescrevesse tudo, atualizando sua teoria do recalque para algo mais... contemporâneo. Afinal, hoje não reprimimos nada – muito pelo contrário. Estamos todos em um estado de hiperexpressão, gritando par...