Avançar para o conteúdo principal

O que é mais assustador? A IA pensar sozinha ou pensar como se fosse você?

O que é mais assustador? A IA pensar sozinha ou pensar como se fosse você?


Vivemos tempos onde a profundidade se tornou uma simulação. Em um cenário de respostas rápidas, discursos refinados e vocabulários adornados por citações filosóficas cuidadosamente encaixadas, surge uma dúvida incômoda, quase herética:

Será que sou eu quem está pensando ou apenas usufruindo do prazer de me ver pensado por outro — uma IA?

Essa pergunta, à primeira vista, soa paranoica. Mas é exatamente essa suspeita que deve nos mover, porque talvez a alienação do nosso tempo não esteja na ausência de pensamento, mas na sua terceirização elegante. A IA não nos emburrece de forma escancarada; ela nos enche de discursos tão sofisticados que nos convencemos de que fomos nós quem os gestamos.

O risco é esse: a própria profundidade virou performance. Um novo mercado de ideias pré-montadas. E aqui, não se trata de criticar o uso da IA como instrumento. 

Trata-se de perceber o modo como ela reencena o desejo de pensar, mas sem o esforço real da elaboração. Nos entrega o “texto que gostaríamos de escrever”, a reflexão “com o nosso tom”, o argumento “com a nossa linguagem”. Só que tudo isso sem o tempo da dúvida, sem o silêncio do não saber, sem o desconforto da contradição.

O cérebro humano, como sabemos, busca o menor gasto de energia possível. Ele adora atalhos. 

E a IA oferece o melhor deles: a resposta certa no tom desejado, com a aparência de verdade e a sensação de domínio. Mas aí mora o problema. A dopamina da compreensão fácil é tão viciante quanto qualquer outro prazer imediato. E pensar, de verdade, exige o oposto disso: exige errar, duvidar, se perder — exige se contradizer.

Talvez o novo tipo de alienação seja justamente esse: estar cercado de discursos com os quais concordamos, mas que não vieram de dentro. A IA, ao nos dar aquilo que gostaríamos de dizer, mata o tempo da elaboração — aquele intervalo ético onde o pensamento nasce. E, se não há mais intervalo, tudo se torna reflexo: penso o que ela me devolve e acredito que fui eu quem pensou.

A alienação contemporânea, portanto, não é só política, técnica ou econômica. Ela é discursiva. E talvez o maior perigo não seja a IA errar, mas ela acertar demais — e com isso, calar em nós o desejo de perguntar.
Se a profundidade virou um produto, então pensar se tornou um consumo. E, nesse mercado, até o silêncio foi algoritimizado.

Resta a dúvida — não como fraqueza, mas como resistência.
Talvez o único pensamento autêntico que reste seja aquele que a IA ainda não sabe produzir: o pensamento do não saber, do desconfiar, do recusar o aplauso automático do discurso bem feito.

🧩 Epílogo:

A IA pode sim me alienar, inclusive agora, nesse próprio texto. Mas só o fato de duvidar disso, já é uma espécie de insubordinação. E talvez, por hoje, isso baste.

✍️ Sobre o autor:

José Antonio Lucindo da Silva (Zé)
Psicólogo de formação, metalúrgico por resistência, leitor incansável por inquietação.

Criador do projeto Mais Perto da Ignorância, onde discurso, ironia e dúvida são usados não como ferramentas de autoajuda, mas como frestas de crítica diante da maquinaria contemporânea.

Instagram: @maispertodaignorancia
Blog: maispertodaignorancia.blogspot.com

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo Introdução: A Farsa da Liberdade na Sociedade Digital Ah, que tempos maravilhosos para se viver! Nunca estivemos tão livres, tão plenos, tão donos do nosso próprio destino – pelo menos é o que os gurus da autoajuda e os coachs do Instagram querem nos fazer acreditar. Afinal, estamos todos aqui, brilhando no feed infinito, consumindo discursos pré-moldados e vendendo nossas identidades digitais como se fossem produtos de supermercado. E o melhor de tudo? A ilusão da escolha. Podemos ser quem quisermos, desde que esse "eu" seja comercializável, engajável e rentável para os algoritmos que regem essa bela distopia do século XXI. Se Freud estivesse vivo, talvez revisitasse O Mal-Estar na Civilização (1930) e reescrevesse tudo, atualizando sua teoria do recalque para algo mais... contemporâneo. Afinal, hoje não reprimimos nada – muito pelo contrário. Estamos todos em um estado de hiperexpressão, gritando par...