O dia em que o cérebro pediu demissão:
O dia em que o cérebro pediu demissão
— crônica jornalística sob a luz (baixíssima) do Projeto Mais Perto da Ignorância
Lead – Se a dopamina escorre como spam pela timeline e Bauman já avisou que fabricamos identidades para vender remédio antes mesmo de inventar a doença, talvez o único neurônio realmente exausto seja aquele que insiste em não clicar no próximo Reels.
1 | A fadiga do atalho
Nos disseram que o cérebro cansado é defeito de fábrica: prefere o menor esforço, recompensa instantânea, zero atrito. Nada mais velho – Aristóteles chamava de akrasia, Kahneman de Sistema 1, os algoritmos de “tempo médio de engajamento”. A novidade é a moldura: uma máquina publicitária que transforma essa preguiça em nicho de mercado. Se penso pouco, compro mais rápido; se compro, confirmo quem sou. Produtor de identidades, diria Bauman (2011), não de sentido.
1.1 Preguiça patrocinada
Plataformas remuneram o deslize, não a reflexão. Quanto mais superficial a troca, maior o ROI do anúncio. O neurônio, coitado, não vê conflito: ganha o mesmo “like” se assente ou discorde. A droga é grátis; a ressaca, privatizada.
2 | Comunidades de conveniência
Conectados, sim – desde que no cluster que afaga. Criamos “bolhas” para não gastar glicose em discordar. É o truque para escapar do risco esquizofrênico citado por Bauman (2013): terceirizar a dissonância, terceirizar a dúvida.
“A preocupação do mercado não é curar, é nomear” (BAUMAN, 2013).
Sem nome, não há hashtag. Sem hashtag, não há tribo. E sem tribo, quem somos? Voltamos ao remédio: rótulo rápido para angústia lenta.
3 | O mito do cérebro que empobrece
Dizem que ficamos burros. Vontade infantil de pureza. As “condições materiais de existência” – alimentação, expectativa de vida, acesso a informação – melhoraram. O que empobreceu foi o tempo dedicado a cada ideia. Inteligência não evaporou; entrou em modo soneca.
Pensar dói, pensar demora, pensar rende pouco like. Não é defeito de hardware, mas de incentivo. Mude o incentivo, e o cérebro acorda.
4 | Ironia final (inacabada)
Se nossa “essência preguiçosa” precede a existência, estamos perdoados. Mas se a existência precede a essência, como queria Sartre, então cada scroll é uma escolha moral. Entre a anestesia cortês e o desconforto fértil, o Projeto pede: preservemos a coceira.
Conclusão? Nenhuma. O feed continua carregando.
Referências:
BAUMAN, Z. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
KAHNEMAN, D. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
VEJA. Conteúdo digital de baixa qualidade pode causar estragos ao cérebro, mostram novas pesquisas. Veja, São Paulo, 4 jul. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/tecnologia/os-estragos-que-o-conteudo-digital-de-baixa-qualidade-podem-causar-ao-cerebro/. Acesso em: 5 jul. 2025. (primeiro link citado)
ORWELL, G. Inside the whale and other essays. London: Penguin, 1962.
VALÉRY, P. Variétés. Paris: Gallimard, 1930.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Antônio C. Novaes. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
SCHWARTZ, B. The paradox of choice. New York: HarperCollins, 2004.
HAIDT, J. The righteous mind. New York: Vintage, 2013.
CARR, N. A geração superficial. Rio de Janeiro: Agir, 2011.
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