Avançar para o conteúdo principal

Curtidas de Renda: como vendemos o osso para salvar o polegar

Curtidas de Renda: como vendemos o osso para salvar o polegar


Curtidas de Renda: como vendemos o osso para salvar o polegar

De influencers a aplicativos de “companheirismo” por IA, um mercado inteiro nasceu para aparar as farpas do convívio humano. Nesta reportagem-ensaio, investigamos quanto custa abolir o atrito — e porque esse preço costuma ser cobrado em carne viva.

A euforia azul-cobalto:

São 22 h43, e meu polegar corre a maratona invisível do “scroll infinito”.
 
Cada deslizar entrega um lampejo de dopamina, segundo paradigmas de neuroimagem popularizados por Nora Volkow, diretora do NIDA. “O pico vem na antecipação”, explicam os artigos de 2015 que mapeiam o estriado ventral ligando-se como árvore de Natal.

Tradução: o prazer acontece antes mesmo de o coração processar a foto alheia. No fone de ouvido, um podcast vende “mindfulness em nove passos”; ironia: meditar ficou tarefa paralela enquanto o feed imanta atenção primária.

Do limite de Dunbar ao vale do silício
Robin Dunbar calculou, nos anos 1990, que nosso neocórtex gerencia no máximo 150 relações estáveis. Em círculos concêntricos, esse número encolhe: 50 amigos “de verdade”, 15 bons confidentes, cinco íntimos. 

Corte para 2025: 
as gigantes de rede social prometem “comunidades globais” com sete dígitos. Resultado prático? Laços rasos que se esfarelam ao primeiro conflito — e uma hipertrofia de perfis que a memória não arquiva. Não à toa, terapeutas relatam pacientes incapazes de sustentar duas semanas sem bloquear o ex-melhor amigo.

A positividade que sangra por dentro
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han batizou de “sociedade da positividade” o regime que varre qualquer sombra do discurso. Mesmo a dor precisa virar carrossel bonitinho em tom pastel.

 “Criticar é hate; hesitar é cringe”, resume a antropóloga digital Aline Mascarenhas. O mercado aproveita. Startups vendem chatbots “cuti-cuti” que migram do sexo virtual para o suporte emocional: prometem diálogo sem julgamento, elogio sem pausa, disponibilidade 24/7. As métricas mostram queda momentânea de solidão; os estudos de follow-up apontam dependência psicológica e depressão tardia — a tal “demência da alteridade”, termo que psicólogos sociais começam a entalhar em artigos sob revisão.


Como se vende consolo:

Economistas da atenção explicam que as plataformas não lucram com seu bem-estar, mas com seu tempo de tela. Quanto menos fricção, mais tempo. A distopia é polida, touchscreen: cada “like” barato custa silêncio no mundo real, onde o corpo range e o interlocutor contraria. Zygmunt Bauman chamaria de “amor líquido”; o estrategista de produto chama de “retenção acima de 28 dias”.
E se a fricção for o remédio?

Freud defendia que a civilização nasce do atrito entre Eros e Thanatos. Lacan completou: o “eu” só existe porque encontra fora de si uma imagem que não domina. Ao eliminar contradição — ou terceirizá-la para um algoritmo domesticado — matamos o nascente do desejo. Clínicos como Patrick Fédida lembram: não há luto nem elaboração sem resistência do real.


Epílogo — Talvez o verdadeiro luxo contemporâneo seja uma conversa que doa levemente: o ranger da cadeira, o atraso no olhar, o “não” que desajusta a frase e obriga a pensar. Enquanto o feed tentar nos empacotar em buracos de fechadura dopaminérgicos, há pouco a fazer além de reintroduzir farpa onde prometem espuma. Afinal, como prega o Projeto #maispertodaignorancia, só sangra quem ainda está vivo.


Fontes principais:

— VOLKOW, N.; Annual Review of Neuroscience, 38, 2015.

— DUNBAR, R.; Behavioral and Brain Sciences, 16(4), 1993.

— HAN, B.-C.; A expulsão do outro, 2015.

— BAUMAN, Z.; Amor líquido, 2003.

— Entrevista exclusiva com Aline Mascarenhas (UFRJ), 01/07/2025.


Referências profissionais do autor:

José Antônio Lucindo da Silva (CRP 06/172551) — psicólogo de formação; operador de maquinário na Laminação Araraquara desde 2009 (Atualmente desempregado 2024) ; ex-trabalhador rural, vigilante e ajudante geral. Entre o aço e a escuta, pratica o ofício de preservar a farpa.
#maispertodaignorancia
03 de julho de 2025

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo Introdução: A Farsa da Liberdade na Sociedade Digital Ah, que tempos maravilhosos para se viver! Nunca estivemos tão livres, tão plenos, tão donos do nosso próprio destino – pelo menos é o que os gurus da autoajuda e os coachs do Instagram querem nos fazer acreditar. Afinal, estamos todos aqui, brilhando no feed infinito, consumindo discursos pré-moldados e vendendo nossas identidades digitais como se fossem produtos de supermercado. E o melhor de tudo? A ilusão da escolha. Podemos ser quem quisermos, desde que esse "eu" seja comercializável, engajável e rentável para os algoritmos que regem essa bela distopia do século XXI. Se Freud estivesse vivo, talvez revisitasse O Mal-Estar na Civilização (1930) e reescrevesse tudo, atualizando sua teoria do recalque para algo mais... contemporâneo. Afinal, hoje não reprimimos nada – muito pelo contrário. Estamos todos em um estado de hiperexpressão, gritando par...