Currículos High-Tech, Cérebros 3G: a nova catequese da falta (e a
fé no substituível)
Resumo - Entre a euforia dos investimentos em IA e a persistência
do analfabetismo funcional, o Brasil vive a contradição de celebrar vagas
técnicas sem conseguir preenchê-las. Geração Z, censo, PNAD e relatórios
globais convergem num paradoxo: há escassez de gente justamente quando tudo
promete ser automatizado. O artigo investiga o improvável casamento entre
carência de qualificação e abundância de tecnologias de “pronto-emprego”,
refletindo sobre o risco de enxergar cada novidade digital como milagre capaz de
abolir esforços humanos – sem perceber que, nesse altar, continuamos nós a
ofertar nossos cérebros em penhora.
1 | A fábrica da
falta em alta velocidade
Segundo o Censo 2022, ainda temos 7 % de brasileiros analfabetos – mais de
11 milhões de pessoas – e profundas desigualdades regionais. Some-se a isso os
27 % de analfabetos funcionais apontados pelo INAF 2024, ilhados na leitura de
bula e na interpretação de boletos. Paradoxalmente, o Censo Escolar 2023
alardeia um recorde: 2,4 milhões de matrículas em educação profissional –
crescimento de 12,1 % em um ano. Há festa e há fiasco no mesmo gráfico.
Enquanto isso, empresas associadas à ABIMAQ relatam gargalos diários para
contratar técnicos de mecatrônica, soldadores ou operadores CNC. O mercado pede
competências STEM; o funil formativo responde num conta-gotas. Nem tudo, porém,
é omissão escolar: o relatório Future of Jobs 2023, do Fórum Econômico
Mundial, projeta reorganização de 23 % dos postos de trabalho em cinco anos,
puxada por IA generativa e automação inteligente.
2 | Tecnologias de
reposição & subjetividades descartáveis
A McKinsey estima que até 2030 de 15 % a 30 % das horas trabalhadas no
Brasil serão automatizadas, exigindo “requalificação massiva” para evitar
desemprego estrutural. Em tese, a velha falta de capacitação desapareceria
porque – ironia suprema – ninguém mais precisaria ser capacitado para tarefas
já repassadas a algoritmos. Mas a lacuna retorna em forma de skills gap
digital. A UNESCO lembra que apenas 40 % das escolas primárias do mundo têm
internet estável. Conectividade, logo, não é sinônimo de literacia digital; é a
propaganda do remédio confundida com a bula.
A Geração Z, descrita por Jean Twenge em iGen, cresce “sozinha,
online e ansiosa”. Até 58 % relatam ansiedade em níveis clínicos quando
confrontados com exigências presenciais – inclusive entrevista de emprego. A
hiperconexão reforça a ilusão de “sabemos tudo porque acessamos tudo”, mas o
IBGE mostrou que ¼ dos jovens entre 18-24 anos está fora da escola e sem
atividade laboral formal. Falta-lhes diploma técnico, mas sobra tela.
3 | Mercado
líquido, diplomas voláteis
Zygmunt Bauman falaria em “modernidade líquida”: laços, carreiras e saberes
tornam-se cada vez mais descartáveis. Quando a demanda muda mais rápido que o
currículo, a formação vira produto perecível. Institutos federais e Senai
correm para modular cursos curtos, bootcamps e nano-certificações,
esperança de “empregar-se imediato”. Porém, pesquisa da PNAD Contínua aponta
que apenas 17 % dos empregados em 2023 atuavam em regime de teletrabalho ou
plataformas digitais – espaço nobre para quem domina TI e inglês técnico,
raridade fora dos grandes centros.
4 | O custo
cognitivo da substituição infinita
Cada inovação que surge para preencher a falta gera, simultaneamente, um
déficit adjacente: novas competências, novas hierarquias, nova exclusão. Como
alertou David Autor, do MIT, sem governança social a IA pode criar um “Mad Max
das habilidades”, depreciando rapidamente ofícios antes valorizados.
Substituímos a carência de soldadores pela urgência de programadores de robôs;
amanhã substituiremos estes por “curadores de prompts”. A falta não some, só
troca de CEP cognitivo.
Para quem aposta que “a tecnologia salvará”, vale lembrar Harari em Homo
Deus: progressos não anulam anomalias, apenas as deslocam – muitas vezes
ampliando desigualdades sob verniz de eficiência. Entre drones e dashboards,
permanece a pergunta: quem alfabetiza para a leitura crítica dos próprios
algoritmos?
5 | Conclusão:
quando o futuro chega antes das aulas
Celebrar cada chatbot como alívio definitivo da falta é repetir a lógica do
cobertor curto: destampa-se a cabeça, cobre-se os pés. O paradoxo brasileiro –
excesso de tecnologia em vitrines e escassez de letramento em salas de aula –
exige menos deslumbre e mais política pública. Sem pacto pela “tecnicidade
humana” – formação continuada, conexão plena, currículo adaptativo – o país
arrisca trocar déficit de soldadores pelo de prompt engineers, sem
nunca fechar a conta.
Referências:
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2022:
taxa de analfabetismo cai de 9,6% para 7,0% em 12 anos, mas desigualdades
persistem. Rio de Janeiro: IBGE, 2024. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/.
Acesso em: 5 jul. 2025.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira. Matrículas na educação profissional aumentaram 12,1%.
Brasília: INEP, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/inep/.
Acesso em: 5 jul. 2025.
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. PNAD
Contínua: Nota Técnica 02/2023 – Teletrabalho e plataformas digitais.
Rio de Janeiro: IBGE, 2024. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/.
Acesso em: 5 jul. 2025.
INSTITUTO PAULO MONTENEGRO; AÇÃO EDUCATIVA. Indicador de Alfabetismo
Funcional 2024. São Paulo, 2024. Disponível em: https://alfabetismofuncional.org.br/.
Acesso em: 5 jul. 2025.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA DE MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS. A
falta de mão de obra qualificada na indústria: desafios e soluções.
São Paulo: ABIMAQ, 2025. Disponível em: https://abimaq.org.br/.
Acesso em: 5 jul. 2025.
MCKINSEY & COMPANY. Jobs lost, jobs gained: what the future of
work will mean for jobs, skills and wages. São Paulo: McKinsey, 2023.
Disponível em: https://www.mckinsey.com/pt-BR.
Acesso em: 5 jul. 2025.
WORLD ECONOMIC FORUM. The Future of Jobs Report 2023.
Genebra: WEF, 2023. Disponível em: https://www.weforum.org/.
Acesso em: 5 jul. 2025.
UNESCO. Relatório global de tecnologia na educação 2023.
Paris: UNESCO, 2023. Disponível em: https://cieb.net.br/.
Acesso em: 5 jul. 2025.
BUSINESS INSIDER. AI could create a ‘Mad Max’ scenario....
Nova York: 2025. Disponível em: https://www.businessinsider.com.
Acesso em: 5 jul. 2025.
TWENGE, Jean. iGen: por que os superconectados estão crescendo menos
rebeldes, mais tolerantes e completamente despreparados para a vida adulta.
São Paulo: Benvirá, 2018.
HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã.
São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro:
Zahar, 2001.
Nota sobre o autor
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551),
pesquisador independente, autor do projeto “Mais perto da ignorância”,
dedicado a analisar a cultura digital sob lentes psicanalíticas, niilistas e
existencialistas.
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