Equações condicionais, comparação social e adoecimento psíquico nas plataformas digitais
José Antônio Lucindo da Silva – #maispertodaignorancia
23/06/2025
Resumo
Este ensaio dialoga com a coluna de Luana Marques na Veja (2025) sobre as chamadas “equações condicionais” – crenças do tipo “se… então” que estabelecem régua impossível para a autoestima. Situo o fenômeno numa perspectiva cognitivo-comportamental, cruzo‐o com dados empíricos sobre comparação social em mídias e com o diagnóstico cultural da “sociedade do desempenho”. Concluo que as plataformas digitais não apenas espelham tais crenças, mas as transformam em métrica pública, criando um ciclo de reforço que eleva ansiedade, ruminação e depressividade. Discuto intervenções clínicas baseadas em TCC, ACT e autocompaixão, bem como implicações éticas para a psicologia em tempos de capitalismo de atenção.
Palavras-chave: equações condicionais; crenças intermediárias; comparação social; flexibilidade psicológica; sociedade do desempenho.
1 | Introdução
Quando Marques (2025) descreve o pensamento “Só serei feliz quando emagrecer”, ela traduz, para o grande público, o que Beck (2019) denominou crenças intermediárias: regras internalizadas que vinculam valor pessoal a um desempenho específico. A novidade não reside na crença em si, mas no cenário: plataformas que transformam padrões privados em placar público de curtidas, amplificando tanto a pressão quanto o alcance dessas “régua(s) impossível(eis)” .
2 | Fundamentação teórica
2.1 Crenças condicionais e perfeccionismo
Na Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), padrões do tipo “se… então” operam como esquemas latentes que disparam ansiedade e evitamento (BECK, 2019). Ellis (1997) chamou o fenômeno de deverismos ou musturbation: imperativos morais rígidos que convertem a vida em teste perpétuo.
2.2 Flexibilidade psicológica e ACT
Hayes, Strosahl e Wilson (2019) postulam que sofrimento crônico decorre mais da fusão com pensamentos do que do conteúdo em si. A defusão cognitiva e o agir orientado por valores oferecem rota de escape ao loop performativo descrito por Marques.
2.3 Comparação social algorítmica
Metanálises recentes ligam comparação ascendente nas redes a aumento de sintomas depressivos, sobretudo quando mediada por ruminação (ARENZ et al., 2023). Usuários com alta tendência a comparar-se exibem maior queda de autoestima após exposição a feeds idealizados .
2.4 Sociedade do desempenho
Para Han (2015), o sujeito contemporâneo internaliza a lógica do “poder-ser-tudo”, transformando-se em empreendedor de si. O resultado é fadiga existencial: exausto, mas sem algo ou alguém a quem culpar, pois a coação vem de dentro. As equações condicionais descritas na coluna encaixam-se nesse pano de fundo cultural.
3 | Discussão
A interação entre crença condicional e ambiente digital instaura um paradoxo clínico:
1. Plataforma oferece validação instantânea → reduz ansiedade a curto prazo.
2. Regra interna recalibra a régua → eleva a meta (“15 artigos viram 20”).
3. Corpo/psique não acompanham → surgem insônia, irritabilidade, anedonia.
4. Usuário posta narrativa de superação → algoritmo recompensa; reinicia‐se o ciclo.
Do ponto de vista psicofisiológico, há hiperativação sustentada do eixo HPA e sensibilidade dopaminérgica a reforços intermitentes, terreno fértil para quadros de transtorno de ansiedade generalizada, depressão e burnout.
4 | Implicações clínicas
Objetivo terapêutico Estratégia baseada em evidência Exemplo de exercício
Desfusão do pensamento Cartão de enfrentamento (TCC) Escrever a equação, “expor” em voz alta e avaliar evidências pró/contra.
Redução de evitamento Exposição paradoxal (ACT/TCC) Postar algo deliberadamente imperfeito e monitorar sensações.
Ampliação de repertório de valores Clarificação de valores (ACT) Mapear domínios de vida (família, saúde, criatividade) e escolher micro-atos diários.
Autocompaixão Práticas de Neff (2015) Diário de falhas tratadas com mesma gentileza oferecida a um amigo.
5 | Considerações finais
O “pensamento condicional” não é mera idiossincrasia cognitiva; é engrenagem fundamental do capitalismo de atenção, que monetiza nossa incerteza transformando-a em tráfego. Enquanto o eu depender de likes para validar o ser, cada curtida funcionará como analgésico que prolonga a dor. Ao clínico cabe não só reestruturar crenças, mas também denunciar — com a devida ironia — o contexto que as recicla.
Referências:
ARENZ, L. et al. Intervening on social comparisons on social media. Journal of Social and Clinical Psychology, v. 42, n. 5, 2023.
BECK, J. S. Terapia cognitivo-comportamental: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 2019.
ELLIS, A. A revolucionária terapia racional-emotiva. Rio de Janeiro: Record, 1997.
HAN, B.-C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
HAYES, S. C.; STROSAHL, K.; WILSON, K. Terapia de aceitação e compromisso: guia para profissionais de saúde mental. Porto Alegre: Artmed, 2019.
MARQUES, L. O tipo de pensamento que nos impede de viver plenamente. Coluna Viver com Ousadia, Veja, 20 jun. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/viver-com-ousadia/o-tipo-de-pensamento-que-nos-impede-de-viver-plenamente/. Acesso em: 23 jun. 2025.
NEFF, K. Autocompaixão: pare de se torturar e deixe a insegurança para trás. Rio de Janeiro: Lua de Papel, 2015.
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