A República dos Divãs Vazios: oito ameaças ao cérebro num país que forma psicólogos em série e adoece em massa
O Brasil exibe o maior exército de psicólogos do planeta — mais de 553 000 registrados — e, paradoxalmente, ostenta a pior taxa mundial de ansiedade (9,3 %) e uma das mais altas de depressão (prevalência vitalícia de 15,5 %). Essa contradição ganha relevo quando confrontada com a lista de oito fatores de risco cerebrais divulgada pelo Estadão: tela, insônia, álcool, tabaco, dieta ultraprocessada, sedentarismo, isolamento social e baixa escolaridade. A engrenagem pós-moderna brasileira acelera todos esses gatilhos, enquanto o cuidado psicológico continua concentrado em capitais, subfinanciado no SUS e orientado para o mercado privado, deixando grande parte da população sem acesso.
1. Oito gatilhos, um país conectado ao estresse
Brasileiros passam em média 9 h 32 min por dia diante de telas, segundo o Global Digital Report ; 72 % relatam distúrbios de sono, revela a Fiocruz . O consumo abusivo de álcool subiu para 20,8 % em 2023, mostra o Vigitel , enquanto um em cada dez óbitos já é atribuído a ultraprocessados . A OMS projeta inatividade física de 35 % até 2030 se nada mudar . Todos esses vetores convergem para inflamação cerebral, perda de reserva cognitiva e crescimento dos diagnósticos de demência e depressão — cenário descrito pelo artigo do Estadão.
2. O paradoxo da “fábrica” de psicólogos
O Conselho Federal de Psicologia contabiliza 553 057 profissionais ativos , formando cerca de 40 000 novos diplomas por ano, número que coloca o país entre os três maiores produtores globais de psicólogos . Contudo, 70 % concentram-se no Sudeste, gerando densidades que variam de 4,7 por 1 000 habitantes no DF a 0,7 no Maranhão . Enquanto isso, 60 % dos municípios ainda não atingem a meta mínima de 1 CAPS por 100 000 habitantes, de acordo com relatórios da CAPS .
2.1. Formação “clínico-privada”
O boom ocorreu em faculdades privadas de pequeno porte com notas modestas no ENADE, concentradas em estágios clínicos e pouco voltadas à saúde coletiva . O resultado: recém-formados preferem consultório ou coaching, setores onde o poder aquisitivo do cliente garante retorno financeiro, em vez de migrar para o SUS — cuja verba extra-hospitalar caiu 24 % em termos reais entre 2017 e 2022 .
3. Motor socioeconômico da ansiedade
A precarização laboral empurrou 43 % da força de trabalho para a informalidade, elevando insegurança financeira e cortisol crônico, ambos preditores de transtornos mentais . Somam-se jornadas fragmentadas por aplicativos, hiperconexão e isolamento urbano; na Região Metropolitana de São Paulo, 29,6 % tiveram ao menos um transtorno mental em 12 meses — quase o triplo das zonas rurais .
4. Quando cuidado segue o cartão de crédito
Metade dos adultos com depressão demora mais de cinco anos para buscar ajuda profissional ; no SUS, filas de meses desestimulam a continuidade terapêutica. A telepsicologia — regulamentada em 2022 — teria potencial de interiorizar o atendimento, mas esbarra em banda larga precária e letramento digital . Assim, a “floresta de divãs” permanece plantada nas avenidas centrais, enquanto bolsões inteiros do país assistem à epidemia de ansiedade sem cobertura.
5. Conclusão irônica
Entre oito fatores que “sacrificam” o cérebro e meio milhão de especialistas que juram cuidar dele, o Brasil conseguiu a façanha de engordar ambos os números. Produzimos psicólogos como se fossem carros — mas estacionamos esses “veículos” nos mesmos bairros onde o tráfego mental já está engarrafado. Enquanto a engrenagem do consumo 24 / 7 continuar moendo sono, dieta, tempo livre e vínculo social, diplomas pendurados não bastarão para conter a avalanche de sinapses inflamadas.
Comentários
Enviar um comentário