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Apagar provas, apagar ruas: IA corrige o futuro enquanto o presente não cabe na lousa

Texto escrito por IA: agora, prove. Há ! Cuidado, é uma armadilha



Apagar provas, apagar ruas: IA corrige o futuro enquanto o presente não cabe na lousa

Por José Antônio Lucindo da Silva — CRP 06/172551
#maispertodaignorancia 


Resumo —(não corrijo prova, não sou professor, é apenas uma ironia para o discurso) Corrijo redações há quinze anos; agora uma plataforma promete fazê-lo em segundos. Enquanto a máquina devolve notas cor-de-rosa, 29 % dos meus conterrâneos não entendem este parágrafo, 93 mil vizinhos dormem na calçada paulistana, e apenas 30 % das escolas públicas dispõem de internet digna de videoconferência. Explorar “atrofia cognitiva” sem olhar o buraco na calçada é, no mínimo, confundir a trave com o gramado.


I. Tempo evaporado em tela de correção automática:

Dou trinta aulas semanais e carrego para casa mais de 20 % da jornada em tarefas extraclasse — luxo legalmente previsto, raramente pago (PONTOTEL, 2024) . Para sobreviver, muitos colegas somam contratos e estouram as 44 h, transformando madrugada em planilha de notas (DAL ROSSO, 2023) . 

A salvação high-tech chega na forma de IA treinada na UFPB: escaneia caligrafia, cospe feedback e promete “ganho de tempo” (UFPB, 2024) .
Mas tempo para quê? Byung-Chul Han já avisou: a sociedade do desempenho não devolve horas, apenas acelera o exaurimento neuronal (HAN, 2015). Entrego a prova à nuvem e continuo exausto — agora sem sequer ouvir a voz do aluno.


II. Espaço líquido, concreto cru:

Enquanto corrijo cliques, a cidade que me paga o salário exibe 93 355 pessoas vivendo sem teto (METRÓPOLES, 2025) . O Sudeste concentra 63 % da população de rua, ironia geográfica de quem ostenta o maior PIB regional (MDHC, 2024) . Bauman chamaria isso de modernidade líquida: laços escorrem, corpos ficam ao relento (BAUMAN, 2001).

Dentro das escolas, 27 % não alcançam 51 Mbps — banda mínima para vídeo; no campo, a proporção de “internet de escargot” é ainda maior (CETIC.br, 2023) . Em casa, um terço dos domicílios das classes D/E navega pagando até R$ 50 por mês por um fio de dados que mal carrega um PDF (CETIC.br, 2022) . Falar em “músculo cerebral atrofiado pelo ChatGPT” quando o sinal cai a cada chuva é, como diria Cioran, “cultivar orquídeas num cemitério” (CIORAN, 1996).

III. O músculo que nunca foi treinado
Três em cada dez brasileiros seguem analfabetos funcionais; o índice empacou em 29 % desde 2018 (CORREIO BRAZILIENSE, 2025) . No PISA 2022, nossos adolescentes marcaram 410 pontos em leitura contra 476 da OCDE — equivalentes a quase dois anos de aprendizado perdido (OECD, 2023) . Mesmo assim, celebramos a IA que “corrige” a redação que eles mal conseguem escrever. Freud já previra: a técnica ameniza o mal-estar, mas não toca a angústia (FREUD, 1930). Lacan lembraria que o desejo nasce na falta; plugados 24/7, sufocamos a falta e, com ela, o próprio desejo (LACAN, 1978).


IV. Contra-Schüler — ou a barricada perfumada:

Fernando Schüler ergue uma muralha de citações clássicas para lamentar cérebros preguiçosos enquanto ignora o desabamento do terreno onde a muralha se apoia. Ele pede que os jovens leiam Crime e Castigo “devagar”, mas não calcula o preço do livro, o trem lotado, a fome que rouba atenção. Ao exaltar a IA como inimiga da criatividade, esquece que, para um professor de periferia, ela é muleta de sobrevivência: sem ela, o boletim atrasa; com ela, o boletim chega — vazio.
Han descreve a violência neuronal, Bauman a evaporação dos lugares, Cioran a irrelevância do sentido, e ainda assim pedem-nos exercícios cognitivos — mas onde, se o tempo foi leiloado ao algoritmo e o espaço virou feed? Quem controla o passado controla o futuro — e ao deletar a prova original, a IA registra apenas o “relatório de falhas” (ORWELL, 1949). O futuro, então, é feito de falhas estatísticas.


V. Conclusão (aberta, como toda ferida):

Corrijo provas enquanto as ruas corrigem a ilusão de progresso. Entrego notas enquanto a nota de corte da dignidade desce dois degraus por trimestre. Se a única vida vivida ficou atrás, como diz Kierkegaard, talvez restem dois gestos: devolver tempo ao papel — ler lento, corrigir a mão, ainda que doa — e devolver corpo ao espaço — garantir teto antes de cobrar “soft skills”. A IA, afinal, só revela o buraco; cabe-nos decidir se preenchemos com silêncio ou com pergunta.
Hashtag, claro, porque ninguém escapa do algoritmo: 

#maispertodaignorancia.


Referências:


• BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

• CORREIO BRAZILIENSE. Analfabetismo funcional no Brasil permanece em 29%. Brasília, 05 maio 2025. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br. Acesso em: 29 jun. 2025.

• CETIC.br. TIC Educação 2023 – A3: velocidade da conexão nas escolas. 2024. Disponível em: https://cetic.br. Acesso em: 29 jun. 2025.

• CETIC.br. TIC Domicílios 2022 – Livro eletrônico. 2023. Disponível em: https://cetic.br. Acesso em: 29 jun. 2025.

• CIORAN, Emil. Breviário da decomposição. São Paulo: Rocco, 1996.

• FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1930.

• HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

• INEP. Divulgados os resultados do PISA 2022. Brasília, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/inep. Acesso em: 29 jun. 2025.

• METRÓPOLES. Número de pessoas em situação de rua se mantém estável em São Paulo. 28 jan. 2025. Disponível em: https://www.metropoles.com. Acesso em: 29 jun. 2025.

• OECD. Brazil – Student performance (PISA 2022). 2023. Disponível em: https://gpseducation.oecd.org. Acesso em: 29 jun. 2025.

• ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 1949.

• PONTOTEL. Jornada de trabalho de professor: o que diz a lei. 2024. Disponível em: https://www.pontotel.com.br. Acesso em: 29 jun. 2025.

• UFPB. Ferramenta de IA corrige redações para o Enem. 23 abr. 2024. Disponível em: https://www.ufpb.br. Acesso em: 29 jun. 2025.

• MDHC. Projeto Moradia Primeiro. Brasília, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mdh. Acesso em: 29 jun. 2025.

• DAL ROSSO, Sadi. A jornada de trabalho docente e a intensificação laboral. Revista Olhar de Professor, v. 26, n. 2, 2023.


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