A taxa de brasileiros com curso superior completo acaba de cruzar a linha simbólica dos 20 %. Segundo a PNAD Contínua-Educação 2024, divulgada ontem pelo IBGE, 20,5 % dos moradores de 25 anos ou mais já concluíram a graduação, contra 19,7 % em 2023. Nas planilhas governamentais isso parece progresso; no espelho social, porém, revela mais o abismo do que a ponte: o diploma sobe, a qualidade escorrega, e o velho sonho meritocrático balança como um apartamento na planta que nunca fica pronto.
1. O que dizem os números oficiais
Série histórica – O salto de 15,4 % (2016) para 20,5 % (2024) é o maior avanço registrado desde que o indicador passou a ser medido oito anos atrás.
Comparativo anual – A alta de 0,8 p.p. em doze meses representa cerca de 1,3 milhão de novos diplomados.
Base populacional – 56 % dos adultos já concluíram pelo menos o ensino médio, também recorde da série.
1.1 Desigualdades cruas
Recorte Percentual de formados Fonte
Brancos 29 %
Pretos + Pardos 13,7 %
Centro-Oeste 24,7 %
Nordeste 14,3 %
A geografia do diploma confirma a “modernidade líquida” de Bauman: corre mais veloz onde o chão já é pavimentado.
1.2 Juventude fora de rota
Entre 18 e 24 anos, só 27,1 % cursam a etapa adequada; a maioria (64,6 %) está fora da sala de aula e sem diploma – um hiato que a planilha não esconde.
2. O lado B do milagre estatístico
Freud diria que todo sintoma carrega sua própria resistência; aqui, chama-se “indústria do diploma”. Colégios corporativos oferecem “graduação em três cliques”, vendendo pertencimento em suaves prestações. Reguladores correm atrás dos excessos do EaD, vetando novos cursos puramente on-line em áreas como Medicina e Direito. O capital, adverte Byung-Chul Han, sabe transformar até a fratura em oportunidade: produz déficit acadêmico de um lado e serviço de “pós-lacuna” do outro.
3. Formação vs. empregabilidade
O desemprego entre quem tem faculdade completa é de 3,6 %, metade da taxa dos que largaram o curso no meio (7,6 %). Mas o salário real pouco aumenta se o conhecimento não acompanha o canudo – a promessa modernizadora esbarra na “qualificação de superfície” criticada por Cioran: muito verniz, pouca madeira.
4. Brasil no espelho global
Entre jovens de 25-34 anos, o Brasil se mantém abaixo da média da OCDE (cerca de 40 % de graduação nessa faixa). A distância educacional vira distância de produtividade e ciência. Aqui, a filigrana gráfica do diploma reluz; lá fora, cobra-se pesquisa, proficiência e inovação.
5. Notas de rodapé filosófico-irônicas
Nietzsche lembrava que “o homem prefere a vontade ao nada”; o brasileiro, ao que parece, prefere o diploma à dúvida.
Cioran sussurra que “o fracasso é o crachá da lucidez”; transformar o canudo em fetiche talvez seja a forma mais elegante de fugir da lucidez.
Lacan diria que o sujeito se escreve no significante – e o significante “graduado” anda inflacionado como Bitcoin em ano eleitoral.
6. Para onde olhar?
1. Qualidade antes de quantidade – Amarrar financiamento público à avaliação séria de aprendizagem.
2. Regulação do EaD – Selar o ralo por onde escapam diplomas “express”.
3. Apoio regional – Focar bolsas e infraestrutura onde o índice mal chega a 15 %.
4. Acompanhamento pós-diploma – Monitorar inserção profissional para evitar que o título vire apenas “marca d’água” no currículo.
Em suma, bater recorde de graduação é fácil; difícil é fazer jus às páginas do diploma. Sem um choque de qualidade, 20,5 % pode ser só mais um número para inflar gráfico – ou, nas palavras de Han, “performance vazia que se consome em auto-otimização”.
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