Anatomia da Dor Performance: Freud, Furedi, Han e Cioran na Era do Sujeito Exausto
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“Nada mais lucrativo do que uma ferida aberta em HD.”
1. Prólogo — Uma selfie da angústia
Hoje, sofrer não basta — é preciso enquadrar, filtrar e compartilhar. Vivemos o paradoxo da hiperexpressão da dor: quanto mais falamos dela, menos a sentimos de fato; a pulsão cede lugar à performance. Este ensaio recomeça do zero para tecer, sem anestesia, a costura entre Sigmund Freud, Frank Furedi, Byung‑Chul Han e Emil Cioran, em busca das linhas de força que transformaram a angústia em commodity.
2. Freud — O pacto civilizatório e o débito pulsional
Freud aponta: civilizar é recalcar. O sujeito paga ingressos à cultura: desejo contido, culpa internalizada, sintoma como recibo. Entretanto, no século XXI, o ritual do recalcamento parece obsoleto — a confissão terapêutica substitui o silêncio elaborativo. A dor sai do divã e vai para o feed:
Sintoma‑story: 24 h de validade e curtidas terapêuticas.
Superego‑algorítmico: vigia, pune e sugere compras.
Nessa nova topografia, o mal‑estar deixa de ser ponto de partida da subjetivação para virar capital social palpável.
3. Furedi — A cultura terapêutica e o fetiche da vulnerabilidade
Para Frank Furedi, a sociedade promove a fraqueza como valor. Vulnerabilidade é currículo; diagnóstico, crachá. A culture of fear cria consumidores de segurança e gurus de resiliência instantânea. O risco não é mais elemento formador: é inimigo a ser eliminado. Assim, cada escoriação psíquica vem pronta para monetização — aulas, apps, infoprodutos.
Diagnóstico premium: quanto mais raro o transtorno, mais likes por centímetro de dor.
4. Han — A positividade que devora o Eros
Byung‑Chul Han detecta o imperativo de desempenho: sorria, produza, otimize. Aqui, a dor incomoda porque atrasa o fluxo. Surge então a positividade tóxica: remendamos o sofrimento com hashtags de gratidão e energias quânticas. O burnout é tratado com planilhas de metas wellness. Han revela a ironia: eliminamos o negativo e, com ele, a chama erótica que move a criação — restam-nos cinzas produtivas.
5. Cioran — O niilismo como último abrigo
Emil Cioran recusa antídotos. Para ele, a dor é clarividência. Onde Furedi vê cultura terapêutica, Cioran vê o triunfo da autopiedade como farsa — preferível o desespero nu ao conforto pós‑moderno. Seu niilismo funciona como vacina contra a anestesia emocional: lembrar que o nada existe nos devolve a gravidade do ser.
6. Convergências — O sujeito exausto
Freud diagnostica a dívida pulsional.
Furedi mostra como transformamos a dívida em programa de milhagem afetiva.
Han converte milhas em índice de performance.
Cioran incendeia o cartão de pontos.
Resultado: um sujeito exausto, que gerencia sintomas como ativos digitais, teme o risco e foge do silêncio fértil. Sofre, mas não elabora; confessa, mas não simboliza; engaja, mas não deseja.
7. Epílogo — Reabilitar o risco, resgatar o trágico
Talvez devamos devolver ao sofrimento sua utilidade estética e ética: reconhecer o trágico como professor, não como vírus. Isso implica:
1. Reapropriar‑se do silêncio — território onde o sintoma encontra a metáfora.
2. Tolerar o risco — sem ele, não há descoberta nem Eros.
3. Desmonetizar a dor — calar o feed, abrir a ferida ao tempo, não ao algoritmo.
Ignorar as notificações da cultura terapêutica pode ser o primeiro passo para ouvir novamente o mal‑estar freudiano, a negatividade cioraniana e, quem sabe, reinventar o desejo além das métricas.
A ignorância aqui não é ausência, é recusa da contabilidade afetiva. É salto no escuro sem patrocínio.
Referências essenciais:
Cioran, E. Breviário de decomposição. Rocco, 2020.
Freud, S. O mal‑estar na civilização. Imago, 2010.
Furedi, F. Therapy Culture. Routledge, 2003.
Han, B.-C. A sociedade do cansaço. Vozes, 2015.
@maispertodaignorancia
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