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Cannabis entre a neurociência e o mito: um balanço crítico dos efeitos psicológicos e terapêuticos



Cannabis entre a neurociência e o mito: um balanço crítico dos efeitos psicológicos e terapêuticos


Por José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo, CRP 06/172551

1. Introdução — do pânico moral ao “efeito boutique”

Durante décadas, a maconha foi tratada como porta de entrada para todas as tragédias psíquicas. Na curva oposta, o hype contemporâneo a eleva a panaceia: de suplemento para “hackear” o sono a lubrificante do capitalismo da criatividade. Entre esses extremos, a síntese recente apresentada pelo neurocientista Sidarta Ribeiro oferece uma terceira via: evidências em vez de slogans. Seu balanço retoma o ponto freudiano de que toda droga é, antes de tudo, significante: ela desloca desejo, recalca angústia e devolve‑nos sob nova forma — muitas vezes mais ambígua do que confortável.

2. O que já é consenso científico?

A literatura convergiu sobre alguns pontos fundamentais:

Memória de trabalho sofre queda aguda nos 40–50 minutos que seguem a ingestão de Cannabis rica em THC; o efeito é pequeno, transitório e não implica déficit permanente.

Creatividade pode aumentar no plano do pensamento divergente, mas ao custo da memória operacional — uma barganha que interessa a artistas, não a cirurgiões.

Epilepsias refratárias respondem de modo robusto ao canabidiol (CBD), já aprovado em diversos países como fármaco de primeira linha.

Dor crônica e náuseas da quimioterapia contam hoje com respaldo clínico sólido para uso medicinal controlado.

Nos ensaios iniciais, há sinais promissores para transtornos depressivos resistentes, neurodegeneração (Parkinson, Alzheimer) e transtorno do espectro autista com componente epiléptico — mas faltam estudos de fase III.


3. Riscos reais (e não o apocalipse)

Síndrome amotivacional aparece em adolescentes usuários pesados, acompanhada de anedonia e queda de rendimento escolar.

Gestação e lactação: o consumo materno se correlaciona a riscos de malformações; a premissa lacaniana do não‑todo corporal da mãe encontra aqui sua crua materialidade.

Doses altas de THC podem precipitar surtos psicóticos agudos em indivíduos geneticamente predispostos — lembrando que a incidência global de esquizofrenia não aumentou apesar do consumo crescente, o que depõe contra o alarmismo higienista.


> Ironia clínica: o mercado vende flores de 30 % THC “premium” enquanto o mesmo Sidarta lembra que 20 % THC + 20 % CBD é muito mais seguro. A lógica do desempenho não poupa nem os canabinoides.



4. Benefícios terapêuticos em expansão

Além das indicações já consolidadas, microdoses de THC mostram potencial efeito antidepressivo — ironicamente, em dosagens mais altas, podem provocar a mesma síndrome amotivacional que pretendem curar. Para idosos, a Cannabis surge como “caminho real” não do inconsciente, mas da analgesia: uma velhice menos dolorosa talvez valha a heresia moral.

5. O desafio regulatório — ou “CBD como novo superego”

O debate público ainda foca exclusivamente no teor de THC, como se fosse o único agente moral da substância. Ribeiro propõe que a regulação se concentre na relação THC/CBD: proporção adequada funciona como superego molecular, limitando o gozo sem extinguir o prazer.

6. Considerações psíquicas

1. Automedicação e esquizofrenia: muitos usuários crônicos parecem buscar alívio para sintomas prodrômicos; o sintoma — como ensinou Freud — tenta curar antes de punir.


2. Adolescência estendida (até 25 anos): fase de poda sináptica; estímulo excessivo pode atrasar a consolidação da identidade.


3. Envelhecimento: para além da analgesia, há indícios de neuroproteção moderada, mas seguimos na zona cinzenta entre esperança e hype.



7. Conclusão — para além do espelho canábico

A maconha não é nem vilã demoníaca nem diva do wellness. É, sobretudo, um artefato cultural que revela nossa dificuldade crônica em lidar com o próprio corpo e com o princípio de realidade. Sidarta Ribeiro devolve à planta a complexidade que lhe cabe; resta‑nos abandonar o terror higienista e a fantasia new‑age e, quem sabe, cultivar uma política de danos realmente mínima — onde ninguém seja forçado a escolher entre a clandestinidade do prazer e a medicalização total do desejo.



Referências:

SOUZA, L. P. Maconha: um balanço dos efeitos da planta, segundo a neurociência. Coluna Conta‑Gotas, VEJA, 30 abr. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/conta-gotas/maconha-efeitos-neurociencia/. Acesso em: 02 mai. 2025.

RIBEIRO, S. As flores do bem: a ciência e a história da libertação da maconha. São Paulo: Fósforo, 2024.

KAFKARIDIS, G. et al. “Effects of Acute and Chronic Cannabis Use on Working Memory: A Meta‑analysis.” Psychopharmacology, 2025.

INSTITUTO ISRAELENSE DE CANNABINOIDES. Relatório Clínico 2024/2025: Uso de Cannabis em Depressão e Dor Crônica. Tel Aviv, 2025.


#maispertodaignorancia

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